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O livro A literatura em perigo de Todorov não poderia deixar de chamar a atenção de quem, como eu, teve formação estruturalista. A década de 70, aquela década perdida, feia, reprimida e deprimida, tempo meia-boca da boca de sino, década que tantos recalcamos por vingança, aquele vácuo no calendário foi o período do reinado por excelência do estruturalismo. Eu estava lá.

  

O livro é interessante. Um bocado breve para tanto assunto, com odores de panfleto. Talvez a intenção fosse essa mesma: militância em prol de uma mudança na literatura. Na literatura ou no modo de tratá-la? Nos dois, parece. As coisas não se separam, ao que tudo indica. Mas não há tempo para aprofundar os mecanismos pelos quais a crítica e o fazer literário se interinfluenciam.

  

A divisão da obra tende ao mecânico. Começa com dados autobiográficos, entre os quais consta sua saída da Bulgária e domiciliação na França (com interessantes informações sobre o modo como nasceram seus métodos de análise literária e como ele conheceu Genette e Barthes), passa a uma crítica do ensino da literatura no sistema educacional francês (grandemente influenciado por esses mesmos métodos) e envereda num exame das origens desse tipo de abordagem naquilo em que elas não se filiam ao estruturalismo (viagem que vai do Renascimento ao século XX em poucas páginas), para depois voltar ao ensino da literatura na França e fazer algumas propostas. 

 

Por que então esse estudo nos interessaria, aqui no Brasil? Porque temos muitos pontos em comum com a França, não há dúvida: é até uma questão de filiação cultural. Em termos. O que se lê de literatura no Brasil pouco tem a ver com a França (ou mesmo até com o Brasil); mas o modo de pensar literatura por aqui tem muitos pontos em comum com a França. Faz tempo que somos uma cultura esquizofrênica. 

 

Queimando etapas, começo pela França.

  

Segundo suas palavras, na França, ler romances conduz apenas à reflexão sobre “noções críticas, tradicionais ou modernas. Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos” (p. 27) É preciso iniciar-se no estudo da “semiótica e da pragmática, da retórica e da poética” (p. 28). Nos exames, as questões que os alunos deverão tratar “são, em sua grande maioria, apenas de um tipo. Elas se referem à função de um elemento do livro em relação à sua estrutura de conjunto, dispensando o sentido desse elemento e também o sentido do livro inteiro em relação ao seu ou ao nosso tempo” (p. 29)

  

Não sei como andam as coisas no Brasil em matéria de ensino de literatura, há muitos anos estou afastada da Academia, mas convenhamos que esse tipo de estudo é desanimador. Nada muito diferente do que eu fiz na USP nos tempos em que lá estive como aluna. Aliás, isso talvez explique por que saem tão poucos escritores dos cursos de Letras. Como em toda dissecação, o que jaz sobre a mesa é um cadáver. E os professores assim formados vão impingir a literatura do modo como a veem (ou não veem) aos alunos dos nossos diversos ciclos. 

 

Mas vamos em frente. Não é propriamente do ensino de literatura que pretendo escrever aqui.

  

Essa mesma formação, claro, é dada àqueles que mais tarde serão críticos. E, segundo Todorov, trata-se de uma formação que não tem o objetivo de desenvolver a escrita, mas a maneira de analisar a escrita. Impossível descrever melhor o que ocorre também no Brasil. Então diz Todorov: “Se os escritores aspiram aos elogios da crítica, devem se conformar a tal imagem [da literatura], por mais pálida que esta seja; de resto, muitas vezes os próprios escritores começaram como críticos.” (p. 42)  

 

Desse modo se fecharia um círculo dialético (ou vicioso?), pois afirmar que a crítica determina o tipo de literatura que se faz complementa a noção empírica de que a literatura determina a crítica que se faz dela. 

 

Mas concretamente que tipo de literatura esse estado de coisas acaba determinando? Segundo ele, uma literatura de três tipos: 1) formalista (os autores “cultivam a construção engenhosa, os processos mecânicos de engendramento do texto, as simetrias, os ecos e os pequenos sinais cúmplices”); 2) niilista (“os homens são tolos e perversos, as destruições e as formas de violência dizem a verdade da condição humana, e a vida é o advento de um desastre. Não se pode nesse caso afirmar que a literatura não descreve o mundo: mais do que a negação da representação, ela se torna a representação de uma negação”); 3) solipsista (“o autor descreve detalhadamente suas menores emoções, suas mais insignificantes experiências sexuais, suas reminiscências mais fúteis: quanto mais repugnante, mais fascinante é o mundo!”) (p. 43) 

 

Assim se configura o perigo a que a literatura está exposta, pois esse tipo de escrita não conquista leitores. Só conquista críticos. E assim, Todorov aventa: “Essa evolução é mais visível na França do que no restante da Europa […] Podemos nos perguntar ao mesmo tempo se não encontramos aí uma das explicações do fraco interesse que a literatura francesa suscita hoje fora das fronteiras do país.” (p. 42) 

 

Pelo menos resta o consolo de que ela suscita interesse dentro das fronteiras do seu próprio país. Não sei quantas literaturas podem se gabar disso.

  

Enfim, a falta de interesse pela literatura é que a põe em perigo.

  

Mas por que pecado fundamental provoca essa falta de interesse? Seu pecado fundamental é entrar num jogo, aceitar “a tese segundo a qual a literatura não mantém ligação significativa com o mundo” (portanto, “sua apreciação não deve levar em conta o que ela nos diz do mundo”) (p. 45).  

 

Escrevi à margem dessa página a seguinte pergunta: “o que é ligação com o mundo?” Todorov não se demora a explicar. Pelo menos diretamente. Só indiretamente é possível deduzir o que ele entende por isso, nas últimas páginas do livro. Convido à leitura. Não vou dizer tudo aqui, pois o objetivo deste artigo, entre outros, é despertar a curiosidade pelo livro.  

 

De qualquer modo, fica a impressão de que a coisa não está devidamente pormenorizada. Sua formulação talvez merecesse reparos. Não me parece possível fazer o que quer que seja sem que a coisa feita tenha alguma ligação com o mundo. Mesmo em arte. Muito menos em arte. Quando Pessoa diz que o poeta é um grande fingidor não quer dizer outra coisa senão que a obra literária é um grande fingimento. Mas que fingimento? Fingimento da dor que é deveras, ou seja, da dor que existe de verdade e está lá: fingida, mas está. A dor é o dado real, portanto a literatura é o fingimento do dado real, o fingimento do mundo, que se encontra na obra, travestido, nunca aniquilado. Descobri-lo assim fingido é obra do leitor e do crítico. Ah, mas isso é difícil! É muito frustrante uma obra exigir o desvendamento e não sermos capazes de fazê-lo. Melhor negá-lo.

 

Voltemos a Todorov. O que ele talvez precisasse enfatizar é que a crítica excessivamente formalista não consegue ou não quer descobrir o mundo que se esconde por trás do fingimento da inexistência do mundo. Sem contar que quem defende a necessidade de não-ligação entre o fruto de uma arte humana e o próprio mundo em que vive o homem merece uma séria análise: como esse indivíduo vê o mundo em que vive e como se vê nesse mundo? De onde ele está falando? — a clássica pergunta. Que tipo de mundo pode ensejar atitude tão drástica? Porque a própria negação de ligação com o mundo tem uma tremenda ligação com o mundo.

  

Estamos distantes, portanto, do materialismo dialético, para o qual afirmar que uma obra de arte não tem ligação com o mundo em que foi criada é tão absurdo quanto dizer que o fruto não tem ligação nenhuma com o tipo de solo no qual germina. Confesso que me parece bem razoável a decadente tese do materialismo dialético, ou seja, a de que todo fruto intelectual traz em si elementos do solo em que germinou. E, se essa tese é decadente, a culpa não é dela, e sim daqueles que a usaram de maneira mecanicista e burra: estes, achando que na arte os elementos do “mundo” entram em estado bruto, criaram correlações estapafúrdias, insustentáveis.

  

Por outro lado, se o mundo existe por trás do fingimento do artista, qual a razão de tanta opacidade, a ponto de se chegar a dizer que ele não está lá? Uma possível resposta: o esforço supremo do próprio artista para ocultá-lo. Em outras palavras, as regras do jogo ditam que a obra não pode ser translúcida. Mas essa noção não é de responsabilidade do estruturalismo. Todorov, sabendo disso, faz uma digressão do Renascimento ao século XX para entender por que essas coisas ocorrem.

  

Resumidamente, misturando minhas observações às de Todorov, seria possível traçar o trajeto seguinte. No Renascimento a arte é imitação, há nela uma finalidade extrínseca. Quanto mais fielmente o artista imita, melhor ele é. Em artes plásticas isso é evidente: o bom artista imita tão bem, que é capaz de despertar a inveja da Fortuna e da Morte (Vasari está cheio desse tipo de coisa). A arte tem finalidade didática, ela deve conduzir à perfeição e à virtude. É feita sob encomenda. É a era do mecenas. Fácil concluir que ela deve atender a quem a patrocina. Com o desaparecimento do mecenas, o comprador da obra de arte se dilui, seus objetivos também. A burguesia já não é apenas a grande, a poderosa (como nas repúblicas italianas), mas também a pequena e a média, o artista fica à mercê de sua capacidade de vender o que produz. A quem? A falta de foco no receptor abre caminho ao individualismo do criador. A arte começa a valer por si só. A beleza é definida como o que não tem fim prático no plano funcional. Começa-se a valorizar a verossimilhança e a coerência interna, mais que a imitação. Mas “não há ainda a tentação de ver na obra de arte um jogo de construção que encontre fim em si mesmo”. Deixa-se de imitar e “passa-se a criar um universo em si, que vale por si mesmo”, mas ainda um universo em diálogo com o mundo. Nunca o mundo, mas uma interpretação dele, e tome-se a palavra interpretação mais no sentido musical do que hermenêutico. “O belo é reconhecido pela harmonia dos elementos da obra” (Todorov citando Kant). 

 

Para os românticos, o conhecimento através da arte parece superior ao que se alcança pela ciência. A razão é abandonada a favor do êxtase. Percebe-se que a verdade da arte não é da mesma natureza da verdade da ciência. É uma verdade do desvelamento, em oposição à verdade dos fatos. Para Baudelaire, não se trata de copiar, “mas de interpretar numa linguagem mais simples e luminosa. (p. 64) A beleza não é uma noção objetiva nem subjetiva, mas intersubjetiva.” (p. 65).

  

No entanto, a grande virada se dá no século XX, com a suspeita nietzschiana, quando “A intersubjetividade, que repousa na existência de um mundo comum e de um sentido comum, dá lugar à pura manifestação do indivíduo […] Nesse momento, a beleza passa a excluir qualquer referência ao mundo exterior.” (p. 69) 

 

Finalizando esse périplo, o autor afirma que, do monismo clássico (imitação), passa-se à complexidade das interpretações dos séculos XVIII e XIX (diálogo entre realidade e arte) para depois desembocar em novo monismo, o da beleza em si mesma.

  

Esse modo de colocar a coisa me parece interessante. Se bem que, como o próprio autor diz, embora predomine, esse monismo hoje convive com uma série de outras correntes, o que sem dúvida é favorecido pela grande diversidade e riqueza cultural que caracteriza o mundo globalizado e democrático. E assim volto ao mundo. E, voltando ele, descubro a pertinência de dizer que essa pluralidade (finalmente a pluralidade democrática!) deveria ser levada em conta, valorizada e estimada por todos aqueles que lidam com qualquer tipo de arte, pois é ela que nos garante contra os reducionismos totalitários.

  

Retomando Todorov, afirma ele que, com esse monismo representado pela valorização da beleza em si mesma (eu ainda duvido um pouco dessa afirmação, mas não me atrevo a desenvolver minhas suspeitas neste momento), tem-se a dissociação entre produto de massa e arte.

  

Em outras palavras, a distorção dos dados da realidade teria atingido grau extremo, com resultante opacidade e hermetismo, o que teria levado o público habituado aos parâmetros da realidade a abandonar a arte, digamos, erudita por falta de melhor palavra.

  

Isso não ocorreu só com a literatura. Todorov não aborda as outras artes, mas é bom lembrá-las. Nesse período (início do século XX), as artes plásticas passaram a distorcer os “dados da realidade”, deixando perplexo o público habituado ao figurativismo. A música abandonou o tonalismo, deixando desorientados aqueles que esperavam o aparecimento periódico de uma tônica inserida numa trajetória coerente, como quem conta encontrar o chão para pousar os pés depois de um salto.

  

Mas, já que comecei a falar de música, parece ter sido esta justamente a arte que primeiro percebeu a necessidade de alguma espécie de retorno. Nesses casos, o caminho de regresso nunca é idêntico ao da ida, como nunca é a idêntica a paisagem que nos embala quando voltamos ao velho lar. Lembrada de ter ouvido Almeida Prado falar de algo nesse sentido, há alguns anos, busquei na internet algum texto que confirmasse as minhas vagas lembranças. Encontrei uma interessante entrevista para a Revista Brasileira de Psicanálise, que pode ser lida aqui, mas transcrevo alguns trechos que me pareceram mais interessantes (os grifos são meus):

 

“Comecei a me interessar pelo trabalho dele [Gilberto Mendes], a aprender com ele, a aprender tudo o que era possível, quer dizer, o atonalismo. Fiquei encantado. Eu não me preocupava absolutamente se ia ou não comunicar alguma coisa: aquilo era uma necessidade da minha inteligência.” […] A música atonal era como se fosse uma porta nova por onde eu não podia entrar. Eu achava ótimo se não me entendessem. Para mim, era chique ser incompreendido. Mais tarde é que eu revi essa posição, mas na época eu sentia assim. Stravinsky foi vaiado, eu fui vaiado… Na minha juventude eu achava isso uma maravilha. […] A [música] atonal era a ruptura. Não tinha mais tônica, era um discurso contínuo, e o que orientava a bússola era a textura. Você podia ir aonde quisesse, o caminho era que fazia o rumo, não precisava mais voltar para casa. Isso é muito simbólico. É uma nova identidade, me fez um bem enorme. Eu tocava aquela música e ninguém entendia, ficavam em silêncio, e eu nem queria mesmo ser entendido. Mas quando cheguei em Paris e toquei minhas músicas moderníssimas, aqueles franceses diziam assim: É démodé. E eu espantado: como? Estou fazendo série e é démodé? Achei aquilo um insulto. Agora que eu tinha descoberto que não era mais tonal, eles estavam querendo voltar ao tonalismo, voltar ao pré-minimalismo. Eu estava lá, correndo pra pegar o trem, e eles já tinham descido. Um dos primeiros a questionar a utilidade daquele atonalismo cerebral foi Luciano Berio, que compôs a Sinfonia em 1968.”

  

Fiz essa digressão pela música porque sempre associei as queixas sobre a falta de leitura à costumeira choradeira do pessoal ligado à música, de que o público não prestigia concertos de música contemporânea.

  

Sem dúvida, no início do século XX começa a ocorrer a grande ruptura entre o grande público e a arte valorizada pelos especialistas em cada arte, porque as obras se tornam propositadamente incompreensíveis. Com uma diferença entre música e literatura. Pela própria natureza da arte, a música se refaz a cada concerto, cada concerto traz à vida uma obra pertencente a um grande acervo que está lá à espera de ser atualizada (no sentido aristotélico). Músico e o público entram em relação imediata e visível a cada evento. As realizações fonográficas são complementares. Em literatura o contato entre escritor e público não é imediato, a ilusão de prescindirem um do outro é maior. Todorov expressa da seguinte forma essa dicotomia: nela, “Tudo se passa como se a incompatibilidade entre as duas [a literatura de massa e a dos especialistas] fosse evidente por si só, a ponto de a acolhida favorável reservada a um livro por grande número de leitores tornar-se o sinal de seu fracasso no plano da arte, o que provoca o desprezo ou o silêncio da crítica”. (p. 67). 

 

Essa dicotomia, parece-me, é o aspecto mais perverso da coisa. Achava que esse tipo de cegueira só ocorria no Brasil, mas vejo que a nossa filiação cultural chega até esse ponto. Interessante também a seguinte informação: “Mas os livros provenientes do exterior (em particular de continentes não-europeus, não participam desse espírito.” (pp. 71-72) 

 

Pena que Todorov não exemplifique. 

 

Enfim, como este artigo está se tornando excessivamente longo, espero caminhar para os finalmentes, inserindo aqui alguns comentários do autor nos quais é possível discernir ensaios de propostas. Obedecendo ao caráter múltiplo da obra, elas abrangem três campos: o ensino, a crítica e a escrita. 

 

Quanto ao ensino: “Pode ser útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim”. (p. 31) (grifos do autor) “Os ganhos da análise estrutural, ao lado de outros, podem ajudar a compreender melhor o sentido de uma obra. […] são instrumentos que ninguém hoje pode contestar, mas nem por isso merecem que nos dediquemos a eles em tempo integral. […] É preciso também que nos questionemos sobre a finalidade última das obras que julgamos dignas de serem estudadas.” (p. 32)  

 

Quanto à crítica: “A meu ver, tanto hoje como naquela época [do início de sua carreira na França], a abordagem interna (estudo das relações dos elementos da obra entre si) devia completar a abordagem externa (estudo do contexto histórico, ideológico, estético). O aumento da precisão dos instrumentos de análise permitia estudos mais agudos e rigorosos; o objetivo último, porém, permanecia a compreensão do sentido das obras”. (p. 36) No estudo crítico da obra “Hoje prevalecem as abordagens internas e as categorias da teoria literária” [movimento que Todorov vê como decorrência de maio de 68]. (p. 37) “A recente corrente da ‘desconstrução’ não levou a uma direção diversa. Seus representantes podem, de fato, se interrogar acerca da relação entre a obra, a verdade e os valores, mas apenas para constatar — ou melhor, para decidir, pois eles o sabem previamente, tão forte é o dogma — que a obra é fatalmente incoerente e que, por isso, não consegue afirmar nada, subvertendo assim seus próprios valores; e é a isso que eles chamam de desconstruir o texto. Diversamente do estruturalismo clássico, que afastava a questão da verdade dos textos, o pós-estruturalismo quer de fato examinar essa questão, mas seu comentário invariável é que ela nunca receberá qualquer resposta” (p. 40) […] “O que devemos fazer para desdobrar o sentido de uma obra e revelar o pensamento do artista? Todos os ‘métodos’ são bons, desde que continuem a ser meios, em vez de se tornarem fins em si mesmos.” (p. 90)  

 

Quanto à escrita: “Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, também, nada é assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo. […] Seja no monólogo poético ou pela narrativa, a literatura faz viver as experiências singulares.   Ao dar forma a um objeto, um acontecimento ou um caráter, o escritor não faz a imposição de uma tese, mas incita o leitor a formulá-la: em vez de impor, ele propõe, deixando, portanto, seu leitor livre ao mesmo tempo em que o incita a se tornar mais ativo. […] Lançando mão do uso evocativo das palavras, do recurso às histórias, aos exemplos e aos casos singulares, a obra literária produz um tremor de sentidos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica […]” (p. 78) (grifo meu). […] Para Rorty , “conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas. […] Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo” (p. 80-81) […] Pensar e sentir adotando o ponto de vista dos outros, pessoas reais ou personagens literárias, é o único meio de tender à universalidade e nos permite cumprir nossa vocação.

  

Para finalizar, dois comentários. 

 

A perplexidade é parte integrante da vida do artista hoje, mais do que nunca. Tudo se tornou complexo demais, uma opção sempre implica mil renúncias. No caso da literatura: para quem e por que escrever? Quem se senta diante de um computador para criar sua ficção ou sua poesia nunca deixa de se fazer essa pergunta. A dicotomia literatura de leitores (desvalorizada) / literatura para a crítica (valorizada) é cruel, burra e preguiçosa. Cruel porque mal esconde um elitismo vesgo. Burra porque restritiva. Preguiçosa porque não se atém seriamente ao objeto de estudo e prefere partir de um preconceito.

  

Por fim, uma reminiscência. Fim da década de 60, movimento estudantil, radicalização da esquerda sufocada, recrudescimento da ditadura, cinema novo, nouvelle vague, música atonal, poesia concreta, tropicalismo, vanguardismos de todo tipo se misturavam a maoísmo, guevarismo, stalinismo, enfim, tantas coisas, que era impossível enxergá-las todas, e, para sobreviver, cada um focalizava uma só, a eleita pelo seu grupo. Era desse modo que os atônitos procuravam simplificar a realidade para conseguirem lidar com ela. Mas o resultado dessa simplificação já não era realidade. Porque tudo o que for simples, uno, monista não é realidade. Abrir-se para o mundo é abrir-se para o outro inesperado, é um movimento amedrontador. Mas sem ele não se vive. Todorov acreditava que o formalismo russo e os métodos de análise literária que ele desenvolveu na Bulgária por iniciativa própria eram fruto dos regimes repressivos: se era perigoso falar de ideias, ficava-se nas formas. Mas, por paradoxal que pareça, o formalismo vicejou numa democracia pluralista como a França, e tanto que está vivo até hoje e precisa ser combatido por um de seus criadores. Portanto, é bom renunciar à ilusão de algum causalismo direto entre sociedades não democráticas e formalismo. Naquelas, o formalismo podia ser visto como fuga ao utopismo; a oeste seria o quê? Parece haver, sim, algum elo intelectual entre as duas sociedades que não depende propriamente do regime político, mas, talvez, de um momento histórico com alicerces mais profundos. Uma Europa recém-saída de uma hecatombe talvez tendesse, com razão, a negar um mundo feio e cruel, fosse qual fosse o rumo seguido, a leste ou a oeste. Ou entre ambas talvez se faça sentir a tendência a sempre exacerbar métodos e meios, transformando-os em fins. Sempre os extremismos. De tal modo que “Ao utopismo de uns corresponde o formalismo dos outros; além disso, uns e outros amam apresentar seus adversários como única alternativa ao seu próprio ponto de vista. E esse formalismo já traz consigo um niilismo, alimentado pela visão dos desastres que marcam a história europeia do século passado”. (p. 70)  Chegamos lá. Foi mais ou menos isso o que senti em 1970, num momento de muita reflexão e perplexidade, quando me rebelei contra o monismo ao descobrir que a realidade é tão rica que deslumbra.

 

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