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Eles eram muitos cavalos: impressões

Eles eram muitos cavalos

Luiz Ruffato

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E partiram com sua carga
na mais dolorosa inocência.

Cecília Meirelles

Romanceiro da Inconfidência

Romance LXXXIV ou
Dos Cavalos da Inconfidência

 

A escrita de Ruffato não peca pela inocuidade. Não se refugia no não-direi, na narcótica egoica contemplação, nem na fuga cínica. Ruffato diz, e diz de um modo espinhoso, contundente. O que ele diz queima na alma, pousa no peito, pesa no estômago. Ruffato, nesse livro, como Cecília Meireles no seu poema do Romanceiro da Inconfidência, demora-se a olhar as testemunhas sem depoimento que ouvem segredos e intrigas, sonetos, liras e odes, transportando criminosas nas insabidas cargas, sendo cúmplices de um mundo preenchido com os símbolos que a cultura ocidental engole e vomita, vomita e engole. O cru é cru, sem escapatória, mas o olhar não é sem sal. Não chega a ser compassivo, mas carreia certa cumplicidade com um esquecido dever-ser: cumplicidade sutilizada, sublimada, avesso filigranado do que aí está. Porque o importante não é o que se olha, é como se olha. E sempre se olha de algum modo, principalmente quando a intenção é não ter modo de olhar. Ocorre que o olhar de Ruffato não se dá a perceber no nexo explícito entre abstrações, entre sofrimento e solidariedade. Mas também não é o olhar do lado de cá da violência, da transgressão, da crueldade. Quando o hediondo parece prestes a atualizar-se, o foco foge, escapa pelo grito de uma torcida no campo de futebol, transforma-se em dor no ganido de um cão: não estamos aqui para isso. Porque não há de haver normalidade em se apertar um gatilho na têmpora alheia, e o ponto de vista ainda é o de quem tem o corpo na mira, não a mão na coronha. É o que distingue o Ruffato não enquadrado no vasto panorama dos que, abraçando o tema da violência urbana com pretensões pós-modernas, aquiescem com a crueldade como rotina, limpam a mente criminosa de culpas ou dúvidas, como se a alma humana fosse plana, como se os conflitos íntimos tivessem sido abolidos por decreto.

 

Os cavalos… quem são esses cavalos? Decerto aqueles que cruzam o Viaduto do Chá, calados, ao peso da sela, que dividem cubículos infectos da periferia, picados de insetos e espinhos, que transportam, quem sabe nos ombros, coronéis, magistrados, poetas, ou que morrem por esses montes, esses campos, esses abismos, silenciosos diante de equívocos enormes. Quem são esses cavalos? Ninguém sabe os seus nomes. Minhas personagens não têm biografia — vi Ruffato dizer certa vez. São o burocrata que tecla não sabe o quê para ganhar o sustento, o jovem sem sonho à espreita de um golpe, o emigrante e o imigrante engolfados em sonhos, o ser que se perde para nunca mais, a vítima da AIDS no desato de ir sem deixar rastro, o taxista que ainda consegue ser puro, o genro que, aproveitando, dorme no Ibirapuera, o passageiro de ônibus, dependurado no cansaço, o talento perdido entre os esquecidos, a prostituta corroída, o pugilista que luta por um pê-efe como Tom King por um naco de carne, o zelador que perdeu a mulher e o rumo, a moça que tira não se sabe de onde a resistência à sedução do ganho fácil com o corpo, enfim gente que só tem biografia no RG, mas ainda guarda o mundo no íntimo. Não são os heróis que herdarão a terra, como na idealização política já detonada. São os deserdados. O operário que eu descrevo quer ter bens de consumo — ainda Ruffato. É verdade. Porque não só ele. Porque o próprio espaço está atulhado de objetos. Assim o texto, reino do substantivo, dos nomes (só os das coisas). Adjetivos, os indispensáveis para qualificar uma personagem naquilo que ela tem de típico, e então um só basta (e esses são justamente os mais substantiváveis: irresponsável, rueira…) ou para descrever um objeto: como é feita uma sola, em que estado está um pão. Os verbos se emprenham da mesma concretude: são essenciais para o entendimento da relação entre coisa e pessoa. Esse universo é propositado, forte, impositivo. Como que para mostrar a falta de alternativa ao império da coisa, às vezes se recorre ao inventário puro e simples. A própria classe média é um estilo, o da coisa possuída, usufruída e desejada, mas não cobiçada desesperançadamente como pelos desvalidos. Classe média cujo bom comportamento não resiste a um olhar mais atento. Classe média que é um corpo encurralado entre o desejo da posse e o medo da despossessão. Seu sonho, só o de ontem. Mas nem mesmo o sonho de ontem pode habitar o cérebro dos sem-biografia que chegaram só hoje de manhã. Futuro? Invisibilizado no horizonte poluído.

 

 

Transcendência não há. São Paulo é a amostra condensada do mundo que se contenta em ser, sem a imaginação do dever-ser. Os ideais, quando inatingíveis, precisam ser rebaixados. Baixos, saem do campo da visão viciada na horizontal. Religião, quando há, não basta e não desbasta, só serve de estaca malparada para evitar o tombo. Que — não há como — sobrevém, e então o chão é o limite onde se dá o encontro apenas adiado da coisa descartada, escarrada, suja, com a gente escorraçada.

 

 

 

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