Immaculada:
uma entrevista
sai do baú
Esta minha conversa com Duanne Ribeiro é de 2010. Foi publicada na revista eletrônica Capitu. Gostei muito da abordagem dele ao meu romance, mas, infelizmente, a revista parece que saiu do ar e, com ela, esta entrevista. Remexendo os guardados, descobri o texto, que agora reproduzo.
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1 – Os personagens de seu livro estão envolvidos com os grandes movimentos econômicos e políticos da época em que ocorrem os acontecimentos. Como foi construir esse cenário histórico, quero dizer, que recursos você usou: pesquisa, entrevistas, etc?
Pesquisa, muita pesquisa. E reminiscências, fatos e casos ouvidos de familiares, principalmente no que se refere aos italianos, ao modo como eles viam o Brasil, os brasileiros, a política, a situação da Itália, coisas como fascismo, comunismo etc. Nas pesquisas, além dos estudos tradicionais sobre a República Velha e a ascensão e instalação do getulismo, foi muito valiosa a História da Vida Privada no Brasil, coleção que considero indispensável a qualquer um que se interesse por esse tipo de assunto. No entanto, apesar da intensidade da pesquisa, nem um décimo do que foi pesquisado está no livro; a História serve de pano de fundo para a movimentação das personagens, seus conflitos pessoais e políticos.
2 – Ficção e não-ficção de teor histórico são algo comuns na nossa produção literária, vide as biografias de Fernando Morais (Olga,Chatô) e as histórias que acabaram atraindo grande atenção por terem sido transformadas em minisséries televisivas (A Casa das Sete Mulheres, A Muralha). Immaculada pode ser inscrito nessa mesma tradição ou se distancia dela? E, na sua opinião, por que essa linha tem tanta atenção no Brasil?
Quanto à não-ficção, é interessante notar que o sucesso das obras que você citou está na razão direta das afinidades que elas têm com a ficção. Veja o caso de Olga: por mais rigorosa que tenha sido a pesquisa histórica de Fernando Moraes, o fator de sucesso do livro é o drama pessoal e pungente de uma mulher. O que veio depois de Olga entrou na sua esteira. Por outro lado, o sucesso de um Laurentino Gomes e de um Elio Gaspari, por exemplo, está em boa parte no modo como eles apresentam os fatos históricos de que tratam. Escreva um livro em linguagem acadêmica sobre o mesmo assunto, e o seu público se limitará ao âmbito acadêmico. Eles escrevem História documental numa linguagem jornalística que atrai grande número de leitores porque sua escritura se aproxima da ficcional. E a ficção se caracteriza por uma construção discursiva capaz de envolver o leitor e pela ênfase nos aspectos mais pessoais das figuras humanas envolvidas. Portanto, no ramo da não-ficção a minha impressão é de que o interesse é muito mais despertado pelo uso dessas técnicas do que propriamente pelo assunto em si. Por outro lado, na ficção essa linha, digamos, histórica não tem sido tão praticada ultimamente pelos escritores. Veja que, das obras citadas por você, uma (A Muralha) é razoavelmente antiga. Apesar desse relativo esquecimento da linha de cunho histórico, o fato de essas obras terem sido transformadas em minisséries de sucesso talvez sinalize para um real interesse do público. Quanto a Immaculada, ora dizem que é um romance histórico, ora que é de época. Não tive a intenção de fazer nem um nem outro. Não é histórico porque o centro de interesse não está na História, e as personagens centrais e atuantes são todas fictícias; as históricas são apenas mencionadas de passagem. Quanto a se dizer que é “de época”, confesso que não sei o que é isso. Se escrever romance de época significa criar uma ficção em época diferente daquela em que vive o escritor, então pouquíssimos romances não são “de época”. Esse rótulo não me diz muita coisa. Retratar uma época simplesmente por retratar não me parece objetivo que se preze. Minha intenção foi inserir uma história na História para mostrar um drama pessoal e uma trajetória político-econômica que desemboca em 1964. Os fatos históricos, no romance, são um caldo no qual fervilham seus elementos, as personagens, que, por sua vez, são capazes de transformar esse mesmo caldo. O que interessa são o fervilhamento e a transformação. Mas o conhecimento dos fatos subjacentes é importante para entender essa dinâmica. Acho que, sem isso, o romance perde metade de sua riqueza.
3 – Como peça social, toda obra dialoga com a realidade em que é criada. Você atravessa a primeira metade do século XX, passa pela depressão de 29, pela questão dos imigrantes, pela luta dos grevistas, por Getúlio, esse político que foi autoritário e populista, com certo tato para questões sociais, notadamente o emprego. Nos nossos dias, passamos pela maior depressão econômica desde 29, ouvimos notícias sobre xenofobia, temos falta de emprego e Lula, que se aproximou à Getúlio em discursos. Esses paralelos podem ser feitos, há algo que os períodos compartilham, ou são situações muito diferentes?
Você tocou numa questão importante. Immaculada não é um romance desvinculado do nosso momento porque minha intenção foi justamente colocar nela alguns dos germes do que somos hoje. Mas os paralelos nunca são mecânicos. Os diferentes períodos vividos por uma sociedade qualquer, por irem nascendo uns dos outros, sempre têm elementos em comum que só a visão de longo prazo permite identificar. Immaculada caminha “pacientemente” (como disse o Chico Lopes numa resenha que fez do livro), percorre várias décadas, fazendo nascer períodos uns dos outros, até desembocar no ponto que me pareceu o mais desejavelmente próximo de uma fase traumática neste país: o regime militar. Quem sabe quantos paralelos pode haver entre 64 e 37… Aliás, as datas no romance são verdadeiras alegorias. Embora ele não fale de nossa época, é como se dissesse: veja só no que fomos dar. Enquanto as personas mudam, suas motivações permanecem. Coisas de ontem e de hoje diferem na roupagem, mas o maniqueísmo dos interesses e dos conflitos tem uma perenidade impressionante.
4 – O livro parece trair as expectativas românticas, pelo menos as minhas. Em outros romances, o amante voltaria triunfante e seria perdoado; ou o marido aprenderia a amar; ou a heroína tomaria as rédeas da sua vida; mas, em Immaculada, as piores possibilidades ocorrem. No livro, você diz: “o ser humano é uma cisterna de potenciais e um cadinho de atos”. O romantismo é uma ilusão? O idealismo é um engano?
Há duas coisas que costumam se misturar: o romantismo e o Romantismo. O livro presta uma homenagem a certo Romantismo literário (Victor Hugo está presente o tempo todo, de modo explícito), mas na primeira página há uma epígrafe de Machado de Assis, ao qual também há referências claras em todo o texto. Há um jogo antitético aí que eu deixo subentendido, para ter o gosto de ver como as pessoas vão descobribndo essas coisas aos poucos. Você puxou uma ponta interessante do véu. O romantismo como atitude emocional é o que a heroína não conseguiu viver, porque a vida não é romântica (lamento), mas ela vivenciava o Romantismo artístico o tempo todo, como herança. Propositadamente não fiz dela uma leitora de histórias sentimentais. Ela não é uma Emma Bovary. O seu romantismo é de outro quilate. É mais Romantismo. Das leituras de Os Miseráveis ela reteve Gavroche, e não Cosette. Para ela, Gavroche talvez fosse a cisterna que engrandecia a sua vida de cadinho. Sempre me fascinou e intrigou a persistência do Romantismo como arte e ideal em certas camadas mais cultivadas da sociedade, principalmente paulistana. Porque esta conheceu de perto o movimento modernista, para o qual o Romantismo era uma forma doentia de sensibilidade. Immaculada, por exemplo, pintava como os seus contemporâneos, porque assim tinha de ser, mas foi conquistada pelos versos dos poetas românticos. Por outro lado, seu autorretrato surrealista não foi aceito, e em vez dele foi dependurado outro na parede, composto no melhor estilo romântico-acadêmico. Até a década de 50 os escritores românticos tinham um imenso público. Na música erudita isso ocorre até hoje. As salas de concerto ainda dedicam quase todo o seu repertório a compositores do século XIX. No meu próximo livro, que está no prelo, há um conto inspirado num noturno de Chopin, que trata, entre outras coisas, dessa persistência do Romantismo em música. Portanto, o Romantismo como grande movimento cultural permaneceu vivo e atuante, na contracorrente de tudo o que se fez contra ele. Por quê? Não tenho a pretensão de responder, só me limito a constatar. Giulio Argan via o Classicismo e o Romantismo como duas possíveis polaridades eternas do espírito humano. A qual delas ou a qual de seus avatares estaríamos dando preferência agora? Porque, enquanto uma polaridade ressalta, a outra recua, mas não morre.
5 – Você trabalhou como tradutora e se doutorou, e a orelha do livro me diz que “seu maior interesse sempre foi a literatura, mas só agora decidiu publicar seu primeiro romance”. Por que? Foi esse um período de gestação de Immaculada? A literatura, para você, acontece num salto da inspiração ou na aglutinação lenta da criatividade e raciocínio (se é que se pode dividir as coisas assim)?
Os estudos de literatura, da forma como são feitos, não têm a intenção de criar escritores, mas críticos ou professores. É o que Todorov denuncia em A literatura em perigo, é a realidade aqui como na França. A atitude crítica atrapalha muito. Isso retardou a minha decisão de tentar publicar um manuscrito, embora eu tenha escrito desde que me sei por alfabetizada. Por que escrever? Sempre me fiz essa pergunta, mas nunca achei uma boa resposta. Nesse período de indecisão muita coisa foi gestada, mas quando resolvi tentar a publicação, eu estava mais motivada para dar andamento a Immaculada, vivia um momento de imersão naquela realidade. Respondendo à outra parte da sua pergunta: em mim a inspiração e a aglutinação lenta, como você diz, funcionam juntas. O núcleo da ideia me vem de chofre. Aí começa a elaboração, que sempre é lenta e trabalhosa.