Todos conhecem a relação entre Morel e Moreau (personagem de H.G.Wells), está no próprio prólogo de Jorge Luís Borges, utilizado no livro publicado pela Cosac Naify. A UnB publicou wm 2007 um livro de Ana Claudia Aymoré Martins, chamado Morus, Moreau, Morel: A ilha como espaço da utopia, que acrescenta um terceiro ingrediente interessante ao duo. Minha intenção aqui é somar outro tempero ao caldo: Goethe. Mas antes faço um exame rápido do modo como o romance se estrutura.
Num espaço em que convivem dois planos (um projetado e outro dado como real pelo senso comum), num espaço dividido, o narrador não sabe em qual dos dois vive, ou melhor, na maior parte do tempo acha que vive nos dois; melhor ainda: acha que só há um. O que entra pelos sentidos do narrador-personagem é estranho e apresentado ao leitor sem nenhuma decodificação. Portanto, este fica à mercê das informações colhidas por aquele, participa de seu esforço para interpretar uma realidade hermética. Durante boa parte da narrativa, o leitor não sabe se essa realidade se insere naquilo que se conhece por literatura fantástica ou se há só impressão de fantástico. Se o narrador estiver sendo vítima de uma ilusão, não haverá fantástico, mas impressão de fantástico, e a ilusão deverá ser desfeita em algum momento por uma interferência racional. Isso não acontece. Há, de fato, uma realidade ficcional fantástica que se revela em certa altura da narrativa, e o racional não se apresenta para desfazer ilusões, mas para explicar mecanismos.
O tempo, como o espaço, divide-se em dois, mais precisamente em dois tipos de presente: uma série de agoras do narrador (ele escreve um diário) e uma série de agora-outroras-repetitivos, para-sempre-presentes, presentes do passado, congelados em imagens que se projetam a intervalos. Desses dois presentes, um vai se desenrolando (o presente do diário), e o outro não se desenrola: espouca repetitivo, irrompe de um outro presente que já se foi. O agora-outrora é feito de retalhos, momentos que, gravados no passado, são periodicamente projetados por um mecanismo que só aos poucos vai sendo desvendado. O entrecho criado em torno desse processo de desvendamento desemboca na descoberta da realidade ficcional fantástica de que falei acima. A partir daí tem início aquilo que ouso chamar de segunda parte do romance: o da reação do narrador à sua descoberta. Parece-me que essas duas partes constituiriam uma divisão estrutural mais grosseira: o antes e o depois da descoberta. Há mesmo uma mudança no andamento da narrativa depois dessa cesura, mas não é possível tratar disso agora.
Na escolha de um tipo de enfoque por qualquer autor, entra em jogo o casamento do que há para ser narrado com os efeitos que a narrativa deve produzir. Casares escolheu a forma diário. Uma das vantagens desse enfoque é a possibilidade de escapar à narração retrospectiva e ir marcando o registro das experiências à medida que elas vão sendo vivenciadas, para que os passos do narrador ou personagem coincidam com os do leitor no caminhar do desvendamento, sem dicas, deixas ou pistas; a outra é dar ser a um narrador que já não existe, o que é feito por meio de um registro textual de autoria dele enquanto existia: dessa forma, o diário é um tipo de testamento que lega à posteridade uma história que de outro modo não lhe chegaria. O livro que o leitor tem em mãos é esse diário. Mas, no caso da Invenção de Morel, para que o diário se transforme em livro, entra em cena outro ator: um editor ficcional que não é transparente, que não se quer invisível, uma quase-personagem que de vez em quando se imiscui em rodapés, expressando suas dúvidas acerca de algumas afirmações do narrador, frequentemente as que dizem respeito ao mundo objetivo, a coisas compulsáveis em mapas e enciclopédias. Essa interferência traduz um modus operandi verificável, afiançável, dissonância afi(n)ada ao tom do que se lê no suposto diário. Um contratempo irônico, um sorriso maroto.
Com isso acredito ter traçado em linhas gerais a estrutura do romance, dando uma pálida ideia da boa tecedura de Casares. Desse modo fica mais fácil perceber como se criam “mundos irreais mas possíveis porque sem contradições internas”, como comenta Carpeaux no posfácio da mesma edição.
Conforme eu disse acima, há de fato fantástico. Mas trata-se de um fantástico surpreendente, com feição de ficção científica. Por que ficção científica? Porque a narrativa tem como base concreta indispensável para a sua montagem um artefato que não existe no plano da realidade extraficcional (na época da escrita e ainda hoje): uma máquina capaz de produzir e projetar imagens dotadas de todas as propriedades das imagens da vida “real”. As imagens são tridimensionais, móveis e atuantes, não precisam de nenhum suporte, nenhuma tela, por exemplo, de tal modo que qualquer observador acredita estar diante de seres vivos. Enfim, algo muito parecido com o que hoje se conhece por holograma, mas um holograma sem suporte, o que ainda não se inventou. Quando Casares escreveu seu livro, essa palavra não existia. Consta que foi criada por Denis Gabor em 1947; depois, portanto, da publicação da Invenção de Morel (1940). Mas é possível que as notícias das primeiras teorizações no assunto tenham chegado ao conhecimento de Casares. Ou teria ele feito uma antecipação genial? Nenhuma das duas hipóteses me soa descartável e talvez as duas se harmonizem.
Parece (ou deveria ser) consenso que, na maioria dos casos, o importante não é esmiuçar o que há da experiência prática na obra de ficção, e sim o modo como esta é manipulada pelo ficcionista e quais são os resultados dessa manipulação. Fazendo uma analogia banal, direi que, se num sonho uma torneira aberta se transforma em cascata, rio, torrente…etc., a pergunta é por que se transformou em uma dessas coisas em vez de outra qualquer, pouco importando as características mecânicas da torneira.
Em Casares, como teria ocorrido a metamorfose, se é que ocorreu? Ou no que sua antecipação genial transcende qualquer teorização científica? A serviço de que finalidade?
Em primeiro lugar, a precisão das imagens carreia um lance afetivo. Nada mais lógico: se essas imagens se dão ao espaço como se lhe dão os nossos corpos, produzindo no espectador as mesmas sensações que estes, é coerente a hipótese de o narrador ter reações afetivas em relação a elas. No caso, ele se apaixona por uma das imagens, por uma mulher, antes de conhecer sua oximórica verdade de simulacro. Este fato sem dúvida determina em parte a reação que ele tem após a descoberta do modo de funcionamento do artefato, e digo “em parte” porque o próprio texto mostra que o passado político do narrador também a determina. Mas não vou analisar aqui tudo o que está implicado na tal reação, pois sei que outros já o fizeram e também porque não quero que este texto se torne tão grande que canse os olhos de quem se esforça por percorrer um artigo árduo numa tela de computador. O que importa é que, sem esse dado (o da paixão), o leque de possíveis desfechos se abriria; com ele, o leque tende ao fechamento.
Mas a manipulação ficcional de Casares não se limita a isso. Expande-se do seguinte modo: o processo de gravação das imagens implica a morte do sujeito gravado, do holografado, direi consciente de cometer o pecado do anacronismo. Implica a absorção paulatina de sua alma, portanto a morte do corpo. Em outras palavras: a imagem ganha vida, o corpo morre. Que tipo de vida tem a imagem enquanto tal não ficamos sabendo, afinal somos leitores de um diário deixado por alguém que passou para o lado da imagem e assim perdeu o poder da escrita, o corpo de atuar do lado de cá. Ele nos deixa sós, com uma pergunta na ponta da língua.
Há, portanto, uma grande metáfora (uma alegoria?), razão de ser da obra. Carpeaux finaliza seu artigo dizendo: “A invenção de Morel é uma sátira. Mas o objeto da sátira não é a técnica e, sim, a condição humana. Pois assim como o fugitivo de Bioy Casares temos todos nós a escolha, apenas, entre a morte pela peste e a prisão na vida – até a morte”. Ora, em Casares, quem ingressa na imagem troca a precariedade da existência real pela perenidade da existência virtual. Perenidade precária (outro oxímoro), pois a imagem durará enquanto durar a máquina projetora, que por sua vez depende dos caprichos das marés, e aí está mais um dado satírico: a perenidade que nosso tempo pode oferecer é essa, é a perenidade laica, tecnológica, é um simulacro de perenidade. No que se inclui a perenidade da arte. Arte como criadora de simulacros: será casual a semelhança entre a projeção de Morel e o cinema? Como não pensar na literatura como arte criadora de imagens intelectuais perenes, como um meio de expressão em que o autor se despe de si e se engolfa nas imagens criadas, confundindo-se com as criaturas pelas quais se apaixona? Uma via de fuga (no sentido da perspectiva ou não), de pro-jeção (no sentido heideggeriano ou não), de transformação ontológica afinal?
No fundo, algo que só contingencialmente se distingue daquela outra perenidade, plena e utópica, que se chama eternidade, aquela pela qual Fausto negociou a própria alma, dizendo a Mefistófeles (a tradução é a de Antônio Feliciano de Castilho):
Se me chegar momento
a que eu diga: ‘Demora-te! És formoso’
então aos teus grilhões entrego os pulsos.
depois de ter declarado:
O que preciso e quero, é atordoar-me.
Quero a embriaguez de incomportáveis dores,
a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; de ora em diante
às dores todas escancaro est’alma.
Para fugir a uma vida que já não lhe parece tragável, Fausto opta pela dor. Fausto pactua. Faustos pactuam. Em Goethe, o desencanto com a ciência; em Casares, o encanto com ela. O tormento da perseguição neste troca de sinal e se iguala à ânsia de atordoar-se naquele. Nos dois casos, a paixão por uma miragem. Motivo mais que suficiente. Todos farão o mesmo: cada um a seu modo, ao modo de seu tempo, sempre com a ajuda daquela “parte da força, que, empenhada no mal, o bem promove”.
Não por acaso, a imagem irresistível da Invenção de Morel se chama Faustine.
A invenção de Morel = Morus + Wells (+ Goethe)?
A invenção de Morel
Adolfo Bioy Casares
Tradução: Samuel Titan Jr.
Cosac Naify, 2006