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Foto: Tom Leishman

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O mito da estranheza

Este artigo foi publicado em meu antigo blog há alguns anos. Em vista do grande número de leitores e comentários que recebeu, foi incorporado nesta página. Poucas semanas depois publiquei outro sobre o mesmo assunto: A estranheza do mito, também publicado aqui.

Este é um momento em que as editoras brasileiras estão dando preferência às traduções feitas diretamente de idiomas originais mais “exóticos”, abandonando de vez as traduções de traduções de línguas pertencentes a um universo cultural mais próximo, como o do francês e do inglês. O enriquecimento de nossa sociedade deve ter relação com essa mudança, que conta já umas duas décadas. Coincide, não por acaso, com uma discussão (já também não muito nova) sobre duas atitudes aparentemente antagônicas: a domesticação e a estrangeirização em tradução. Para os que não pertencem ao ramo, tento explicar: a tradução domesticadora cria um texto fluente, que não parece traduzido, lançando mão de arredondamentos sintáticos, fugas vocabulares e adaptações culturais capazes de criar grande distância em relação àquilo que está na língua original e pode causar estranheza; a estrangeirizadora teria, teoricamente, o objetivo de deixar transparecer essa mesma estranheza, preservando tudo o que seja possível da língua de origem.

 

As resenhas de livros traduzidos, quando se dão o trabalho de comentar a tradução, oscilam entre esses dois polos: há quem elogie traduções pela fluência ou as critique pelo oposto, e há quem considere positivo o apego ao texto de origem, ainda que a fluência seja sacrificada.

 

Eu não estaria escrevendo este texto agora se essa oscilação não fosse capaz de desnortear o próprio tradutor.

 

Um pouco de história. Como nasceu a valorização do apego ao texto de origem, da chamada tática estrangeirizadora em oposição à domesticadora, àquela que costuma ser tachada de etnocêntrica? O paradigma desta é a prática das belas infiéis (belles infidèles), cujo florescimento, segundo os historiadores da tradução, abrangeria o período que vai do século XVI ao XIX (em seus aspectos de defesa ideológica, pelo menos, pois o próprio século XIX é dado como o marco do nascimento da abordagem filológica, que valoriza o texto de origem). Sabe-se, porém, que sua prática se estende pelo século XX adentro. Sabe-se também que na Alemanha do século XIX surgiu, contra essa prática, a mais forte e fundamentada reação, cujos agentes eram representantes de uma burguesia ilustrada (e até certo ponto nacionalista) que se insurgia contra os hábitos culturais e literários de uma aristocracia afrancesada. A literatura consumida pelo povo obedecia aos tais moldes “etnocêntricos” (de inspiração francesa, naturalmente), e assim a atividade do grupo de intelectuais alemães preconizador da busca da verdade do texto foi sempre caracterizada como elitista.

 

Esse movimento teve profícua posteridade em todo o mundo. A reação aos abusos da domesticação, porém, ainda que perfeitamente legítima em princípio, também incorreu em extremos cuja análise aprofundada não cabe num texto como este. Em linhas gerais, esses extremos se configuram na criação de artefatos linguísticos que não encontram ressonância na língua da tradução, tal qual falada e escrita no momento. Enfim, a prática dessa orientação cria construções artificiais, só presentes em traduções ou, em casos extremos, naquela tradução específica. De qualquer modo, convido a não perder de vista o momento histórico em que essa reação surgiu: o da busca de uma identidade nacional, no bojo do movimento de unificação alemã. Porque, paradoxalmente, naquele momento isso significava, entre outras coisas, lançar mão de um alemão mais antigo e genuíno. Significava a afirmação de uma língua ideal.

 

Seus adeptos se espalharam pelo mundo e, com o tempo, passaram a atuar no próprio núcleo da cultura contestada e contra ela. Na França, um de seus epígonos foi Antoine Berman, que teorizou dentro do próprio baluarte do etnocentrismo contra as práticas que em todo o mundo eram consideradas típicas da sua cultura. Em sua esteira, no universo anglófono, conta-se como importante a obra de Lawrence Venuti.

 

Toda visão etnocêntrica parte do pressuposto da superioridade da cultura do sujeito sobre a do outro. Tem sido combatida em todos os quadrantes em nome da compreensão e da consideração desse outro. Nada mais justo em princípio. Trata-se de uma luta que integra todo um legítimo questionamento pós-colonialista. Não por acaso floresceu na segunda metade do século XX.

 

Mas agora cabe perguntar: o que temos nós com isso? O nosso etnocentrismo, a exemplo do etnocentrismo combatido na Alemanha com sucesso no século XIX, sempre foi o alheio. Agora, é também alheia a sanha estrangeirizadora por nós assumida. Quando girávamos em torno das belas e infiéis traduções anglófonas e francófonas não sabíamos que praticávamos o etnocentrismo alheio. Agora, que giramos em torno dos duvidosos textos estrangeirizantes, fazemos o mesmo, também sem saber. Enfim, nós somos o “outro” do etnocentrismo, mas nunca soubemos disso ou nunca soubemos impor a nossa “outridade”; sempre engolimos o alheio como nosso. Continuamos antropófagos no pior sentido oswaldiano.

 

Entre a estranheza consciente e o decalque inconsciente a linha divisória geralmente não é visível ao leitor. Aliás, Henri Meschonnic não dobrou a língua (sem trocadilhos) e deu à nobre estranheza exatamente o ignóbil nome de decalque. Falava ele em clivagem do signo, coisa sutil, que regala os teóricos. Qual seria a diferença entre intencionalidade estrangeirizadora e decalque? Reduzindo, a consciência. Na primeira, é como se o tradutor dissesse: “Aqui a sintaxe estrangeira é x, o vocábulo estrangeiro é y, eu sei muito bem do que estou falando, e meu intuito é mostrar que este texto é estrangeiro”. No decalque, o tradutor importa estruturas inconscientemente e confunde cognatos sem perceber. A diferença entre os dois é a mesma que existe entre o pintor que faz o abstrato por opção e o que o faz só porque não domina as técnicas figurativas. Portanto, equiparar os dois é extremamente degradante para os estrangeirizadores. Contudo, o resultado final nem sempre denuncia a presença ou a ausência dessa consciência, e o texto é espinhoso (e não estou falando de erro).

 

A criação de estruturas estranhantes em certos idiomas é um ato de coragem. Isso ocorre em inglês e francês, por exemplo, línguas nas quais as posições de sujeitos, verbos, objetos e advérbios são legisladas com mão de ferro. O oposto é o português. Temos uma flexibilidade espantosa. Chegamos às raias da anarquia. Metemos os advérbios onde bem entendemos, podemos criar verdadeiros bailes de sujeitos e verbos numa troca atordoante de passos. Intercambiamos infinitivos e gerúndios com a maior cara de pau e não somos capazes de perceber a diferença entre este e o particípio presente porque reduzimos tudo a um denominador incomum, e ninguém parece se escandalizar. O maior índice da nossa irreverência está no uso dos pronomes: não uniformizamos nada, numa clara opção pela anomia. Para não dizer caos.

 

Por isso, as estruturas das línguas estrangeiras entram no nosso território sem pagar alfândega. E, quando alguém decalca, há quem o justifique: está deixando que em seu texto transpareçam as diferenças, transpareça o “outro”. Mas nós sabemos que não é bem assim. O decalque é prática cotidiana, fruto do desconhecimento da língua materna, fruto da perplexidade de quem não sabe muito bem para onde ir, porque precisa abrir seu caminho a facão. Qual é a melhor técnica de tradução? As alternativas parecem simples, mas não são. O tradutor, diante do elogio da prática estrangeirizadora, muitas vezes fica perplexo. Segui-la é estar na moda, é praticar o que a academia preconiza, afinal. E é produzir um texto que sempre encontrará defesa ou, no mínimo, complacência por parte de uns, mas também, quem sabe, profunda aversão por parte de outros.

 

Ser estrangeirizador, no caso brasileiro (desculpem) não é nada original, para não dizer revolucionário. Está longe da temeridade que representa derrubar os ícones de sua própria cultura ou desafiar os de uma cultura hegemônica. Significa, justamente, ir-maria-com-as-outras, em vez de enfrentar a maré. Afirmar conscientemente as características da própria língua, buscá-las no que há de mais genuíno, conhecer suas estruturas mais fluidas e elegantes, optar por uma terminologia mais apropriada e criativa são atitudes mais corajosas e originais, mais dignas de uma nação que se preze. E mesmo assim, paradoxalmente, é possível não ser etnocêntrico. Enfim, entre as duas táticas geralmente apresentadas como antagônicas há uma terceira via, pela qual na prática enveredam os bons tradutores, os que são capazes de escapar à balbúrdia reinante. Mas isso depois de muito autodidatismo, porque neste país o uso da língua é visto como coisa intrinsecamente intuitiva. Tal como criar filhos ou gingar num ritmo qualquer.

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