Muitos autores já criaram personagens cândidos. O de Voltaire é o mais óbvio. Mas não é do tipo de Serginho, personagem de Ruffato. Policarpo Quaresma era um cândido, mas também de outro tipo. Policarpo Quaresma, aliás, já não existe no Brasil, se é que alguma vez existiu. Serginho, sim, é o típico cândido brasileiro.
Pode parecer estranha essa história de cândido brasileiro típico. Porque brasileiro costuma ser visto como aquele sujeito que quer levar vantagem em tudo. Esse existe, é também um tipo. Um tipo urbano, no qual a candura se transformou em vigarice, numa metamorfose semelhante à que ocorre quando a saudável replicação das células se transforma em câncer. O vigarista é uma desnaturação do cândido. O brasileiro cândido pode ser encontrado nas grandes cidades, mas com características recessivas. É dominante mesmo nas áreas rurais.
Esse hibridismo metamórfico parece ser um dos aspectos daquilo que Sérgio Buarque de Hollanda chamou de “homem cordial”, conceito que tanta controvérsia deu. E só podia dar, porque o conceito de Hollanda é tão híbrido quanto o brasileiro e seu psiquismo. A candura é um aspecto da sua cordura, aquele jeito de ser de quem parece alheio a tudo o que não toque o coração, a tudo o que não seja emocional. O racional, quando entra na vida e na argumentação do cordial, vem como justificativa, que é a forma sentimental da explicação.
Mas vamos deixar de lero-lero e voltemos ao Ruffato.
Ruffato cria uma narrativa em primeira pessoa de uma personagem chamada Sérgio de Souza Sampaio (SSS!), nascido em Cataguazes, aliás, cidade natal do próprio autor. Primeira manifestação da cordialidade hollandiana: o pomposo Sérgio de Souza Sampaio é coisa de burocracia. A realidade exige que ele se chame Serginho.
Serginho é a outra face do vigarista. Porque nós, brasileiros, parecemos condenados a ter de escolher entre duas míseras alternativas: enganado ou enganador. Quem não quer ser o primeiro se transforma no segundo. Os que não conseguem essa transformação passam a vida na primeira categoria e, pior, muitas vezes sem perceberem.
Serginho é um desses. Até aí nada de mais.
Frase esta que me leva a um parêntese.
Em literatura (aliás, esse pensamento eu li numa entrevista do próprio Ruffato, mas não sei dizer qual) todas as histórias já foram contadas. Para criar, portanto, seria preciso repensar o modo como a história é (re)contada. Esse “modo” inclui um mundo de coisas. A linguagem parece ser a mais óbvia: já que todas as histórias já foram contadas, vamos ser inventivos na linguagem. É uma possibilidade, desde que a linguagem não se transforme em estrela principal, quando o texto corre o risco de perder atrativo. A outra opção seria renunciar a contar uma história. Há os que renunciam em parte, há os que renunciam pura e simplesmente. Mas quem consegue fazer isso e ainda assim manter o leitor interessado? Alguns conseguem, eu diria que poucos. Uma terceira possibilidade está na interligação que os fatos têm entre si dentro de uma narrativa, de tal modo que causas e efeitos acabam por criar uma armação tal que transmite um enfoque, lança luzes sobre a interpretação que o autor dá aos fatos. Essas luzes geram a reflexão do leitor. É como em música: criam-se inumeráveis linhas melódicas e combinações harmônicas a partir dos mesmos e limitados elementos. É como em língua: criam-se inumeráveis morfemas a partir dos mesmos e limitados fonemas. E por aí vai.
Fim do parêntese.
Ruffato opta por esta última técnica. Seu foco está entre duas referências: deixar de fumar e voltar a fumar. Esses marcos conferem uma genial criatividade ao texto.
O restante da genialidade, como eu aludi acima, está no uso magistral que ele faz da mineirice da fala do protagonista, cujos embates com o português lusitano extrapolam o âmbito linguístico, ou melhor: os aspectos linguísticos não passam de manifestação, de epifenômeno. A realidade subjacente é, justamente, o embate entre uma indefectível candura/cordura/cordialidade e o improgramado mau humor, a incompreensível racionalidade e a inesperada vigarice. A inteligência e a sutileza com que Ruffato capta os caracteres da sua personagem causam admiração a cada linha. Porque ele conseguiu explorar com maestria a injunção de escrever uma história em cidade do exterior: sabia que, assim como o conceito de homem cordial acudiu a Hollanda quando ele se encontrava fora do Brasil, as especificidades do seu protagonista mineiro só poderiam aflorar plenamente em ambiente contrastante.
Além disso, o ritmo da narrativa não dá tempo à respiração. Os fatos se encadeiam com rapidez, ratificando ou retificando impressões, o tom é leve e bem-humorado, o que não me permitia largar o livro a cada virada de página. Aliás, esta última característica me remeteu o tempo todo a outro mineiro: Fernando Sabino. A mesma alegria do narrar que captava em Sabino eu encontrei em Ruffato.
Foi uma descoberta. Não pretendo parar nela.
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