Retomo o assunto do artigo O mito da estranheza, mas agora de maneira mais dinâmica, quero dizer, caminhando da teoria à prática e dando exemplos. Naquele eu falava da mania de estrangeirizar tudo — como se fosse preciso resgatar os pecados da domesticação — e da grande confusão que se faz entre estrangeirização (legítima em alguns casos) e decalque (ilegítimo sempre). Neste, pretendo tratar da estranheza de aderir à estranheza, contrariando o bom senso. Temos o costume de engolir mitos; não os criamos, mas os acatamos religiosamente. E é da natureza do mito perseverar na contracorrente dos fatos.
O mito do apego à letra é o atual avatar da antiga “fidelidade ao autor”. Essa expressão e sua irmã, “fiel ao autor”, sumiram dos manuais quando começaram a ser questionadas por alguns teóricos, sobretudo das linhas desconstrucionistas. Chegou-se a falar em motivações edipianas, e então muita gente, como que envergonhada, começou a migrar para a bermaniana fidelidade à letra, nova roupagem para um santo antigo. Observância total. A tal ponto que, por exemplo, quando Berman elogia a tradução de Klossowski Ils allaient obscurs sous la désolée nuit para o original latino Ibant obscuri sola sub nocte, dizendo que o francês manteve (eis a estranheza — viva!) a mesma inversão latina, ninguém pergunta por que ele passou batido por aspectos como aliteração, ritmo e outras coisinhas bem importantes em poesia. Quero dizer: em nome de um dogma, ignora-se a alma da tradução poética, que consiste em procurar manter o sentido (ainda que nem sempre o significado) por meio de elementos estéticos, de tal modo que o efeito estético (repito) sobre o leitor do texto traduzido seja o mesmo experimentado pelo leitor do texto original ou o mais próximo possível dele. Nesse sentido, a transcriação é infinitamente mais inteligente. Desde que bem entendida, claro, e não confundida com reprodução caótica (para não dizer paródica ou estrambótica) de sons e ritmos, como em certa tradução premiada, que tanto rumor causou há alguns meses. Ignorar o leitor, esse ator importante da tríade formada com o autor e o tradutor, é o que não confessa quem defende entusiasticamente a fidelidade à letra.
Boa parte dos tradutores, porém, superada a trôpega fase de iniciante, percebe que nada é tão simples quanto leva a crer a dicotomia estrangeirizar<>domesticar. No entanto, para se lidar com o que é complexo, há de haver jogo de cintura. Coisa que pouca escola ensina, privilégio como o batuque de Noel, que ninguém aprende no colégio. Porque, se o original faz rir, sorrir, solidarizar-se ou odiar, é preciso que a tradução também o faça, caso contrário não terá cumprido seu papel. De que vale traduzir um provérbio, um trocadilho ou uma piada ao pé da letra e botar no rodapé a informação de que na língua original isto quer dizer aquilo? O leitor ficará informado (e grato, se tiver paciência de ler a nota), mas frio. E aqui cabe perguntar: qual o papel da tradução, ou melhor, qual o papel desta ou daquela tradução? Pois, se cada uma tem um papel, como usar as mesmas táticas para todas? No entanto, é o que acontece. Muitos tradutores parecem totalmente tolhidos na criatividade. Curvam-se com tanta submissão ao original, que os textos ficam intragáveis, quando não ininteligíveis. E aí se pode sair do terreno da teoria consciente e cair no do decalque. É um passo. Dou um exemplo de decalque frustrante. Outro dia, passeando pela Livraria Cultura, vi um livro chamado Homens maus fazem o que homens bons sonham. Que língua é essa? Será essa a tal interlíngua de que falam os acadêmicos? Em toda a minha não tão curta vida nunca ouvi um brasileiro dizer espontaneamente uma frase assim. Não comprometo aqui o(a) tradutor(a), pois capa e título de livro são atividades conscienciosamente cumpridas à revelia de quem traduz. Eu mesma, publicados alguns livros que traduzi, fui surpreendida pelo título da capa (felizmente nunca com opção tão “estranha”). Dei esse exemplo para mostrar que algumas construções acabam parecendo normais, apesar de não fazerem parte do repertório do falante nativo de uma língua, e que a coisa se generaliza.
Por contraste, lembro aqui Alison Entrekin, em sua entrevista à revista Época. Quando lhe perguntaram qual era sua palavra favorita em português, ela respondeu: orelhudinho. E depois explicou:
É muita informação embutida numa palavra só. Acho isso maravilhoso. Esta elasticidade da língua portuguesa. Dos diminutivos e dos aumentativos.
Engraçado é que uma estrangeira veja isso, enquanto muito brasileiro seria capaz de usar algo como pequeno menino de orelhas grandes.
Mas à Alison volto depois. Por enquanto fico na estranheza estrangeirizadora consciente. Não nego que nos meus tempos de meninice tradutória já tenha até sido sua adepta. Perpetrei desatinos que hoje renego. Adoraria reparar alguns. Com o tempo e a prática percebi que o leitor quer ler, não tropeçar, que está se lixando para teorias da tradução, que quer se enternecer, se divertir ou chorar tanto quanto o leitor estrangeiro. Mas, para causar efeito, é preciso ousar. Quem ousa peca, tanto quanto quem não. Mas com o tempo começou a me parecer melhor pecar pela ousadia que pela covardia.
Haveria muitos exemplos, mas eu precisaria escarafunchar meus arquivos (alguns foram perdidos em disquetes frágeis) ou reavivar minha memória (já um tanto combalida). Caso mais recente foi o de Ilusões perdidas, que alguns acompanharam. Ilustra bem duas concepções opostas, com efeitos tragicômicos. Quando a L&PM encomendou a tradução, sua editora informou que não gostaria que os nomes fossem traduzidos (coisa que ocorreu na coleção da Globo, dirigida por Rónai, em que Lucien virou Luciano etc.). Concordei. Esse é justamente um aspecto da estrangeirização que me parece legítimo. Nome é fato cultural, e mantê-lo ajuda a preservar um clima que dê ao leitor a dimensão do estrangeiro, necessária para que ele não tenha a falsa impressão de estar lendo um romance brasileiro ou português. Isso em princípio, mas não incondicionalmente. Há nomes e nomes. Há os que “querem dizer” alguma coisa, aqueles cujo significado é importante no enredo. Para o bem da literatura, será preciso traduzi-los. Foi o que fez Lia Wyler com frequência no Harry Potter, por exemplo. E há nomes que a tradição histórica impõe traduzidos, e ignorar esse fato é, justamente, demonstrar ignorância. Exemplo? Certos nomes de cidades, reis, papas, santos, artistas, filósofos etc. Mas em Ilusões perdidas algum revisor, em algum momento, não entendeu por que eu mantinha Lucien, mas escrevia Francisco I, e resolveu “estrangeirizar” tudo, atendendo decerto a algum princípio mal compreendido. Na época, fiquei muito zangada. Comento esse fato agora porque tive a grata satisfação de receber, oficiosamente, a notícia de que será lançada em breve a segunda edição com as devidas correções. Mas, voltando ao princípio. Por que eu disse que essa tradução ilustra concepções opostas? Porque, enquanto o revisor tentava estrangeirizar a qualquer custo, eu procurava domesticar (com perdão da palavra) os trocadilhos, rotulados como intraduzíveis ao longo de todo o texto pela equipe de Rónai na edição da Globo (que, parece, está sendo relançada). Não sei se fui bem-sucedida ao traduzir, por exemplo, le temps est un grand maigre (paródia de le temps est un grand maître = o tempo é um grande mestre) por o tempo é o melhor remendo (paródia de o tempo é o melhor remédio); ao traduzir les vers dévoreront la librairie ! (os versos/vermes devorarão os livros) por com versos não quero prosa! num momento em que um livreiro arrogante faz o trocadilho para rejeitar a produção poética do herói e dizer que prefere a prosa… Mas ousei. Não me amarrei à letra, porque naquele momento isso me parecia empobrecedor. Em compensação, num livro de exercícios filosóficos, quando a autora usa tomber amoureux para fazer elucubrações sobre o uso de tomber (cair) nas relações amorosas, como traduzir a expressão pelo seu correspondente usual (= apaixonar-se), se com ele não se conseguiria estabelecer um nexo com os comentários em torno de cair? Então precisei do apego ao original, com a condição de não criar um monstrengo tradutório. Lancei mão de “estar caído por alguém”, e assim resolvi a questão.
Enfim, estrangeirização ou domesticação? Nenhum dos dois. Jogo de cintura é a resposta. É o que faz Alison Entrekin, como deixa claro em sua entrevista à revista Época. A propósito de Cidade de Deus, diz a certa altura, numa evidente demonstração de que tenta evitar estranhamentos inúteis, mas ao mesmo tempo precisa manter a cor local:
Se eu fizesse apenas para o inglês britânico e a mesma coisa saísse nos Estados Unidos, os ingleses achariam muito natural e se entregariam à leitura. Mas os americanos não iriam se entregar porque toda hora se deparariam com palavras que soariam britânicas. Isso poderia levar o leitor americano a imaginar uma história se passando na Inglaterra e não no Brasil. Da mesma forma que não posso usar as gírias de um bairro pobre de Nova York para falar da realidade de uma favela no Brasil, porque os leitores vão entender aquela realidade como sendo a de Nova York e não a do Brasil. É bem complexo .
Em outro trecho, sobre a mesma Cidade de Deus, numa evidente demonstração do esforço por manter dados culturais, fala do momento em que tentou adaptar a gíria carcerária brasileira à inglesa:
Só que depois desta pesquisa toda, acabei traduzindo mais ao pé da letra. Embora na Inglaterra possam não chamar de xerife [um tipo de preso], achei que [a palavra] refletia algo daqui, pelo fato de terem escolhido chamar de xerife.
.
Por fim, uma frase da Alison, que eu assinaria embaixo:
É possível explicar em nota de rodapé, mas aí esbarra na fluidez, em não querer quebrar a suspensão da descrença do leitor.
Suspensão da descrença, a chave do encantamento da ficção. Que direito tem a tradução de quebrá-la?
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