Fui durante certo tempo professora de português. Nunca achei que a função do professor de português fosse falar em certo ou errado, mas sim desvendar as estruturas linguísticas que estão à disposição de seus falantes como potência à espera do ato, mostrar que são muitas as maneiras de usar a língua criativamente, provar que esta é um patrimônio cultural inigualável e, principalmente, ajudar a escrever cada vez mais e melhor. Não é fácil. Consegui umas vezes, outras não. Mas há os que não conseguem nunca. É coisa difícil para os que foram formados no velho esquema do certo e do errado e não se livraram dele. Mas, por incrível que pareça, também o é para a nova geração, formada pela cartilha linguística das últimas décadas. Nestes professores, a única preocupação parece ser a de matar o pai, no sentido freudiano. Assim, a minha impressão é de que se continua não ensinando o que realmente importa, em virtude da dificuldade que as pessoas têm de se livrar de esquemas unilaterais.
E o leigo? Leigo é aquele indivíduo que sempre tem uma pergunta do tipo “como se diz ou escreve tal coisa?”. O leigo quer receita. E com razão. Língua é um assunto complicado (qualquer língua, meus senhores!). E com o que é complicado, de duas uma: ou a gente estuda para tentar desvendar os mistérios, ou deixa que os outros estudem e contem os mistérios para a gente. O leigo está no segundo caso. Nascemos todos com a potencialidade da fala, mas não nascemos com a língua, assim como nascemos com a intuição do ritmo, mas a dança exige de nós um aprendizado, e com base na simples intuição ninguém fará parte de uma orquestra sinfônica.
No entanto, parece que hoje em dia a tendência é achar que a gramática (no sentido de conjunto de processos de construção e expressão de uma língua, e não de prescrição de normas) já nasce conosco, é inata, natural, inerente, e só nos cabe dar-lhe ouvidos e vazão; que tudo o que dizemos é expressão dela, e que, portanto, o modo como a fala nos expressa é sacrossanto, sendo profanas e sacrílegas as convenções gramaticais (agora sim, no sentido de normas ou nomenclaturas). O que vale é a interioridade individual e a sua eventual manifestação coletiva, perdendo todo o valor a convenção que nos precedeu, formulada talvez por representantes de uma classe que desprezamos.Tem preeminência a língua falada, expressão imediata dessa individualidade. A escrita, que não é imediata nem espontânea, não passa de reflexo morto da verdadeira vida. Um mal necessário, talvez.
Enfim, é o culto histérico da naturalidade contra a artificialidade, do inato contra o adquirido.
Num país que pouco lê, tudo isso se explica.
Voltando ao leigo. Quando alguém pergunta a um “especialista” como se diz ou escreve algo, a mensagem subliminar é a seguinte: preciso pensar em outras coisas, quero uma fórmula que resolva este meu problema imediato. E por que aquele é um problema imediato? Se quem pergunta sabe falar (e tanto sabe que perguntou), se usa sua língua a contento para se comunicar (a tal ponto que conseguiu transmitir ao consultado a sua dúvida), por que ele quer saber se (por exemplo) o pronome naquele caso vai antes do verbo ou depois do verbo? Em que a sua comunicação vai ser dificultada ou impedida caso ele diga “Me sinto bem” ou “Sinto-me bem”? Rigorosamente, em nada. Então por que a preocupação?
Aí, duas respostas. A primeira é que com isso o falante quer se integrar na comunidade (importante para ele) que maneja bem o instrumento língua e conhece suas convenções. Sim, porque o conjunto de regras desse tipo acima(não se pode dizer o mesmo sobre todos os fatos da língua) é bem do âmbito da convenção pura e simples. A segunda é que a língua não é só comunicação, e que “Me sinto bem” ou “Sinto-me bem”, na verdade, não significam a mesma coisa em termos simbólicos, e o consulente talvez o intua.
A respeito de tudo isso muitos já escreveram, o que significa um bom cabedal de sabedoria para se pensar. Na teoria. Porque na prática, das pessoas envolvidas com o assunto, umas agem como se a língua fosse uma entidade aristocrática que precisa ser reverenciada como divindade, e outras, supervalorizando o seu lado plebeu, querem promover, a qualquer custo, a sua ascensão a um novo e reverenciável Olimpo. O resultado é sempre o mesmo: a imposição. Os dois lados são insuportavelmente autoritários. Com algumas nuances: pois alguns, vivendo uma verdadeira guerra, acham que todo o mundo está acreditando que a sua causa é a língua, quando na verdade é uma ideologia. Porque língua não é só língua nunca. E nem eu agora estou falando só de língua: eu estou falando de conflitos de classes e valores simbólicos. Acontece que o poder simbólico da língua é tão abrangente e permeante, que é difícil distinguir as coisas. Principalmente para quem está no meio do jogo. Mas quem se especializou no assunto teria a obrigação de ver com clareza. Para tanto, seria preciso uma boa dose de estudos de filosofia, sociologia, antropologia e psicologia. Quem faz isso?
Voltando à questão da convenção. Desde que Saussure falou do assunto, sacralizou-se a sua cartilha. De pouco adiantou Jakobson e Benveniste fazerem reparos a esse conceito de convencionalidade/arbitrariedade do signo: até hoje, no Brasil, há gente que quando fala em convenção só cita Saussure. Resumindo grosseiramente, o que Saussure quis dizer na sua época (quando devia ser preciso fazê-lo) é que a língua não baixou do céu dada por Deus ou pelos deuses, que ela é fruto humano. Perfeito. O único problema é que a ideia de arbitrariedade passou a ser confundida por alguns com vale-tudo: se tudo é convenção, tudo pode ser mudado. Ora, vivemos de convenções de todos os tipos e achamos normal respeitá-las, porque foram feitas para isso, mas as da língua são altamente questionáveis aos olhos de muitos. Por que essa sanha? Por causa do seu valor simbólico. A ninguém ocorre questionar se devemos ou não comer arroz com garfo, visto que a colher é muito mais prática. Trafegar pelo lado direito da rua quando ela tem duas mãos também é uma convenção (em vez disso, poderia ter sido convencionado o esquerdo). Neste último caso, o desrespeito à convenção pode valer a própria vida (ou a de outros), mas no caso da colher o resultado prático é diferente, ninguém arrisca a vida, seria mais fácil questionar. Quem quiser comer arroz com colher em qualquer restaurante de nossas cidades será visto no mínimo como um roceiro que nunca aprendeu como usar talheres. Preconceito? Sem dúvida. Mas quem quer enfrentá-lo? Alguém poderia até defender o uso das mãos: é o único realmente natural. No entanto, por que tendemos a respeitar convenções? Porque tememos a arbitrariedade total, a anomia. As convenções linguísticas não são muito diferentes das outras: seu objetivo é criar pontos de referência dentro de dada comunidade (basta consultar a história das gramáticas das línguas modernas). Quando alguém pergunta: “como se diz isso?”, está implicitamente dizendo: “quero ser aceito nessa comunidade linguística”. Por que lhe negar a resposta? Por que passar sermão a cada vez que alguém se preocupa com uma regrinha gramatical? Por que demolir quem dá a resposta? Por que impingir aos leigos reflexões que caem muito bem em ambiente acadêmico, mas para as quais estes estão pouco se lixando?
Que impertinência!
Quem escreve num livro didático: “se você disser xxx, poderá ser alvo de preconceito linguístico” deve entender de linguística, mas não entende nada de preconceito. A roupagem linguística do preconceito esconde muito mais coisas do que mostra. O preconceito é de classe, de pertencimento social, não de língua. Quem diz “nós vai” passa o atestado de sua origem humilde, do estrato social pouco valorizado a que pertence. Portanto, tem-se aí uma manifestação simbólica, em que a forma linguística está por outra coisa. Logo, falar em preconceito “linguístico” é eufemismo. Ora, o estudante está na escola para aprender aquilo que não lhe foi dado com o nascimento nem com a paternidade: um nível de saber que ele não pode encontrar em outro lugar. É interessante os autores da frase do livro adotado pelo MEC não terem percebido (ou terão?) as mensagens implícitas do que escreveram. Quais são elas? Em primeiro lugar, uma espécie de negação ou, no mínimo, atenuação da importância da escola para o ensino daquele saber. O aluno poderá se perguntar: se tanto faz, por que esse esforço? E aí o professor de português que se vire para justificar sua presença lá. Em segundo lugar, está a ideia de que língua só serve à comunicação imediata. É falso. Para a comunicação imediata o que se aprende em casa dá e sobra. Qualquer um entende o que significa “Nós vai” sem ir à escola. A terceira mensagem é: quem considera errônea uma forma como essa é preconceituoso, portanto desprezível. Porque a palavra preconceito e derivados têm o dom de acender o justo anseio de justiça e punição, a divina, angelical, indignação da vítima e de seus defensores.
Será que isso tudo não foi capaz de deter o ímpeto do autor? Ou nem lhe passou pela cabeça?
Se ele pensou em tudo isso e mesmo assim escreveu essa frase, faltou-lhe prudência. Se não pensou, faltou-lhe instrução.
Para não tornar este texto muito longo, passo ao aspecto da língua como algo mais que mero meio de comunicação imediata e banal. Ela não é só isso. Língua é muito mais. Língua é repositório cultural. Língua é arte na literatura. Língua é o meio de que nos servimos também para expressar ideias abstratas e complexas, e tanto mais abstratas e complexas quanto mais avançam nossas sociedades, nossos estudos, nossos afazeres. Dizer a um aluno que ele deve usar a norma culta para não ser vítima de preconceito (e só isso!) é omitir que ele está lá para aprender a usar um instrumento que lhe possibilitará no futuro — quando ele for engenheiro, médico, cientista, astronauta, pedreiro ou mecânico — a melhor expressão de suas ideias, a comunicação mais rigorosa de seus pensamentos, de seus dados, de suas descobertas. Em vez de passar a mão na cabeça do “coitadinho”, não seria mais positivo ensinar a ele que o aprendizado aprofundado da língua faz parte do seu aperfeiçoamento global como indivíduo? Não seria mais interessante descortinar o futuro que o aguarda como sujeito de sua história, como pessoa capaz de dominar e expressar bem todos os seus saberes? Como cidadão pleno de um país que se quer adiantado? Não está na hora de abandonar o paternalismo? O cordialismo à brasileira?
Tão estreito quanto ditar regras gramaticais como se elas tivessem baixado com o Decálogo no Sinai é promover verdadeiras cruzadas contra quem defende o respeito às convenções da língua culta. Porque essa convenção, como todas as outras, foi criada para uniformizar usos e (extremo paradoxo!) facilitar a comunicação. Língua é mutável? Sem dúvida. Mas não tão mutável quanto parecem crer alguns. Porque, como tudo o que está inscrito na tradição de uma sociedade, ela é fruto da luta entre um impulso de mudança e um impulso de permanência. A cada momento, cada forma linguística é a manifestação da resultante dessas duas forças, de tal forma que cultuar a mudança é tão estúpido quanto cultuar a permanência.
Mas, como diz Michel Villey[1], “Os produtos de toda dialética são precários: é raro manter-se no meio, na linha de crista, mais tentador é deslizar para um lado ou para outro”. E as pessoas sempre se agarram a um só lado das coisas, porque contemplar os dois lhes dá vertigem.
Adendo. Hoje, um dia depois da postagem acima, me ocorre um adendo. É sobre a inverossimilhança de um dos exemplos dados no livro do MEC: “Os livro mais interessante estão emprestado”. Quem chega a ponto de achar um livro mais interessante que outro deve ter lido o suficiente para já não cometer essa desconcordância, se tiver um dia cometido. Por outro lado, quem comete esse tipo de desconcordância não usa “estão”. Mais verossímil seria aí um ‘tão ou até um ‘tá. Enfim, é o típico exemplo forjado em mesa de professor.
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