“Eu odeio atualizar uma ópera: representar ‘Macbeth’ num supermercado para fazê-la parecer mais moderna não faz sentido para mim.”
Robert Wilson – Folha, 18/11/2012
Só essa frase de Robert Wilson me faria aderir completamente ao seu conceito sobre como encenar uma ópera. Wilson aí se opõe a uma tendência forte hoje em dia, que é a de criar cenários atuais para libretti de outrora. Assim, por exemplo, uma trama que versa sobre um fato ocorrido no reinado de Elisabeth I, com música de um compositor italiano ativo no início do século XIX (estou falando de Roberto Devereux, de Donizetti), é representada por cantores de terno e cantoras de saia curta e salto alto. Ou então, uma tragédia do século XV é transposta para a década de 1930, numa simbiose duvidosa entre ordenações políticas e hábitos jurídicos institucionalizados em épocas diversas (penso, no caso, em Beatrice di Tenda, de Bellini). O libretto, nessas alturas, fica sempre relegado a segundo plano, pois as referências históricas que ele contém são ignoradas, o que pode levar a contradições flagrantes entre circunstâncias da época retratada e da época transposta para o palco. Quem conhece o libretto haverá de sempre ter certa sensação de falseamento. De tudo o que vi, o único caso que não me transmitiu esse sentimento é a gravação de L’Elisir d’amore, com trama transposta para a década de 1920, gravada em DVD pela Decca, com Alagna e Gheorghiu. Mas aí fica a pergunta: será que o cômico se presta mais a isso do que o trágico? A pergunta não é retórica. Portanto, não sou contrária a priori à “modernização”, como muitos, mas continuo cada vez mais convencida de que é preciso ter muita sensibilidade para não contradizer o libretto e para enriquecê-lo de alguma maneira, ou seja, ter alguma razão justificável para a adaptação.
Há, além disso, uma outra concepção (a que Wilson parece se referir também), que é a da — digo eu — encenação alegórica. Assim, alguém resolve que Madama Butterfly há de ser representada realmente como uma borboleta, e eis que a cena toda se transforma num imenso casulo… etc. etc. etc., com tudo o que a alegoria comporta, pois a alegoria, que é uma grande metáfora, deverá ser sempre realimentada, ou seja, ampliada, para que perdure como tal e comporte alguma coerência interna. Ou então ganham proeminência em cena objetos ou seres absolutamente estranhos a esta, cuja significação o espectador precisa desvendar, num labirinto de associações prováveis ou improváveis; é quando tenta entender, por exemplo, por que enroscaram bobes nos cabelos das bruxas de Macbeth ou introduziram uma máquina de escrever numa cena da mesma ópera, em que Banquo conversa com o filho numa floresta escura. Refiro-me a uma gravação que está no mercado. Nesse tipo de encenação a consequência mais imediata é desviar irremediavelmente a atenção do espectador, que, absorto a desvendar enigmas, se esquece da ópera.
Também nesse caso me parece que a renúncia à montagem tradicional, mimética, deveria ter razões justificáveis. Ou, em outras palavras, o resultado do alegórico deveria ser melhor que o tradicional.
Em comparação com essa concepção, quando penso na de Wilson, logo me vem à mente aquela tradicional e (até certo ponto) discutível diferença estabelecida por Goethe entre alegórico e simbólico, que poderia ser resumida da seguinte maneira: o símbolo expressa um nexo misterioso entre duas ideias; a alegoria confere forma visível à concepção de tal nexo. O símbolo é uma função muito profunda da mente; a alegoria é superficial, ajuda o pensamento simbólico a expressar-se, mas ao mesmo tempo ameaça a sua existência ao substituir a ideia viva por uma figura. Enfim, enquanto os bobes nos cabelos das bruxas alegorizam uma provável dona de casa bisbilhoteira (criando-se artificialmente um nexo), o uso de uma mesma cor no vestuário de duas personagens pode simbolizar um nexo invisível entre as duas (por exemplo, uma comunhão de intenções não muito explícita na trama). Devo confessar que, nesses termos, prefiro o simbólico ao alegórico.
Foi pensando em tudo isso que me dirigi ao Theatro Municipal ontem, 25 de novembro de 2012, para ver Macbeth.
Vou dizer agora o que senti diante do trabalho de Robert Wilson.
Nem só da batuta competente de Abel Rocha sobreviveu a abertura (não muito longa, é verdade): uma mulher de costas, com um quarto de lua no céu, tudo sobre fundo escuro, compunha uma primeira cena inventada, introduzida, não constante no libretto. No fim da abertura, a mulher, depois de alguns movimentos, aparece de perfil, e seu rosto, que sempre estivera iluminado por luz branca, de chofre é iluminado por luz vermelha. Sendo sangrenta como é essa tragédia, de imediato me veio à mente a simbologia do sangue, mas, inexplicavelmente, ela parou aí. Ou seja: no transcorrer da ópera, quando o assunto era realmente sangue, a cor vermelha não apareceu. A preponderância de azul, preto e branco só foi quebrada (que me lembre) duas vezes pelo vermelho: na “chuva” de pequenos retângulos suspensos por fios, que “cai” do alto ordenadamente no final do coro do fim do primeiro ato, e no vestuário de Malcolm (diferentemente de todo o restante da indumentária, na qual predominam o preto e o azul, a sua é totalmente vermelha). Digamos que o vermelho aparece onde e quando menos se espera, e não aparece quando previsível. No momento em que, menosprezando o marido, Lady Macbeth diz estar também ela com as mãos sujas de sangue, isso é feito em movimento: ela atravessa o palco com as mãos erguidas, e a luz (branca) abandona seu rosto para incidir apenas sobre suas mãos (brancas!): não há sangue.
Por quê? Fuga ao óbvio? Talvez. Talvez a intenção seja marcar o descompromisso total e intransigente com a realidade, ou melhor, com o realismo.
Se conceitualmente é interessante, por outro lado contribui para a diluição da tragicidade. Alija-se a catarse, fica só a Ideia. Uso de propósito aqui uma tradicional terminologia ocidental para tratar de uma linguagem cenográfica com forte influência do teatro nô, japonês. Mas aí mora o xis da questão. Macbeth entra em cena e sai dela tal e qual, imutável. Mas não só ele: isso ocorre com todos. No gestual dos atores, a intenção cênica se traduz por poucas variações. Chama a atenção a movimentação das mãos, que, por não chegar a ser codificada (como no teatro japonês), transmite às vezes a impressão de se estar num teatro de marionetes. Ora, o enxerto de uma convenção em outra — no caso a de um teatro oriental altamente codificado num tipo de arte que sempre contou com grande liberdade de representação — me parece ter forte vocação ao impasse. É o que acontece com frequência. É como se a ópera ficasse engessada (não pretendo especular aqui, por exemplo, por que Macbeth em três ocasiões dá um giro de 360 graus, como se ensaiasse um rodopio interrompido na primeira volta). Os rostos são máscaras, quando visíveis, pois nem sempre o são. As bruxas são e serão sempre sombras escuras sobre fundo escuro, carregando cada uma um tipo de cesto que se ilumina de tempos em tempos. Se algumas soluções têm certa magia e parecem até geniais (por exemplo, o primeiro diálogo entre Macbeth e a mulher, quando só o rosto dela é iluminado: ele não passa de sombra), a repetição constante dos mesmos recursos acaba cansando. É o que ocorre com o “cesto” das bruxas, que, embora impressione na primeira aparição, depois acaba parecendo empobrecedor para essa — digamos — personagem coletiva tão importante: perde-se pujança, dilui-se o significado. A escuridão perene do fundo faz o espectador desejar uma cena, uma que seja, iluminada. O desconforto é muito aumentado pela fita de luz que percorre a ribalta, ou seja, contra um fundo sempre escuro uma faixa (para não dizer um facho) a nos ferir os olhos do começo ao fim. Muita gente reclamava.
Em suma, o tipo de orientação acolhida e empregada por Wilson, se traz em si a grande promessa de arrancar da trama o seu significado mais profundo e mostrá-lo simbolicamente por meios bem escolhidos, também traz em potencial o tédio do minimalismo levado às últimas consequências. O terror, o medo, o ódio, a cobiça, nada se expressa pelo gestual: só resta o libretto. Porque, assim como o teatro japonês tem convenções precisas para expressar ideias, atos, sentimentos ou coisas que os valham, também o teatro de ópera sempre contou com convenções, instrumentos e recursos próprios. Só poderá ficar o vazio se estes forem retirados ou atenuados no todo ou em parte, sem que em seu lugar se ponha alguma convenção comungada por encenadores e espectadores. Em certo momento, esse vazio me pareceu tão perceptível, que fechei os olhos e tentei descobrir se o fato de deixar de enxergar a cena interferiria demais na minha captação do espetáculo. Pois concluí que pouco era subtraído ao meu envolvimento. Portanto, é com surpresa que leio hoje no artigo da Folha indicado acima as seguintes palavras de Robert Wilson: “Em ópera, meu principal objetivo é facilitar a escuta da música através daquilo que se vê; do contrário, melhor seria ouvir uma gravação num CD ou simplesmente fechar os olhos sentado na plateia de um teatro lírico”. Pois é, aí nos desencontramos, Robert Wilson e eu, ou, em outras palavras, o efeito que ele pretendia não se operou em mim. Ou talvez a escuta da música tenha sido facilitada demais pelo abuso do vazio cênico.
Minha sensação, de qualquer modo, é que a excessiva uniformidade dos caracteres empobreceu o espetáculo. Por exemplo: a decadência física dos dois protagonistas no último ato não fica clara, não era intenção que ficasse clara, mas faz falta. Na encenação de Wilson, Macbeth e a mulher são os mesmos do começo ao fim, mesmo no momento do declínio, quando ele constata que a vida está ressequida em suas veias e que ninguém chorará em seu túmulo; quando ela, enlouquecida, está à beira da morte. Em resumo, por mais bonita que seja uma encenação (e essa é!), prescindir totalmente de elementos dramáticos numa obra como essa pode torná-la simplesmente… cansativa.
Coisa sempre digna de observação é o que cada encenador tira ou põe numa montagem. No caso de Macbeth é muito costumeiro que estejam ausentes algumas coisas que, apesar de tudo, continuam no libretto. Normalmente ausentes são as visões de Macbeth. Ora, se só ele vê o punhal antes do assassinato do rei, se só ele vê os fantasmas durante o banquete, por que tais coisas estariam em cena? Justifica-se portanto a falta desses avejões, embora também haja quem os ponha onde o personagem diz que estão. Mas, se essa ausência tiver de ser suprida por alguma coisa, espera o espectador que essa coisa se apresente realmente por algo que traduza terror. O que é aquele objeto anódino que desce ao palco enquanto Macbeth se aterroriza com um abantesma que lhe invade o banquete? Melhor seria o vazio.
Outras ausências são menos justificáveis, embora constantes. Por exemplo: a barba e o caldeirão das bruxas. No caso da barba, tenho a impressão de que a maioria dos encenadores recua diante do provável efeito grotesco e risível que teria um grupo de mulheres barbadas. No que se refere ao caldeirão, imagino que, no caso de uma encenação mimética e de um palco menos dotado de recursos técnicos, seria grande a dificuldade de pôr e tirar de cena um caldeirão de bruxas. No entanto, quando Macbeth investe contra estas (o que não aconteceu ontem, aliás), há um tumulto (ou deveria haver), e ele comenta: o caldeirão sumiu. Confesso que sempre tive muita vontade de ver uma boa solução para esse problema. Não foi dessa vez.
Outro ilustre objeto que está ausente é a candeia de Lady Macbeth. No caso, a lamparina foi “simbolizada” por uma espécie de retângulo fluorescente que surge no fundo, quando os dois observadores da cena (a dama de companhia e o médico) comentam o comportamento da doente-demente. Essa ausência não deixa de causar surpresa porque a tal luz sempre me pareceu desempenhar um papel eminentemente simbólico: Lady Macbeth perambula de olhos arregalados, mas não enxerga; leva sempre nas mãos uma luz que, portanto, de nada lhe serve. A retirada de um objeto desses, na minha opinião, é um empobrecimento. No entanto, na mesma cena, é introduzido um objeto que não está em lugar nenhum do libretto: uma máscara (de abutre?) no rosto do médico. Lembra as máscaras que os médicos medievais usavam quando iam tratar de doentes com peste negra. Trocou-se então a lamparina por uma máscara descontextualizada. Saldo?
Para não me alongar, termino falando dos cantores. Anna Pirozzi (Lady Macbeth) sem dúvida foi a estrela. Sua voz de grande extensão, flexibilidade e penetração agradou a todos. Seus agudos são vibrantes, sendo só de se lamentar que os graves mais graves nem sempre tivessem a estabilidade necessária, mas isso não chegou a prejudicar o conjunto. Mesmo porque, como todos sabem, Verdi castiga. E ela é dona de uma personalidade verdiana, sem dúvida. A voz do barítono (Angelo Veccia, Macbeth), em compensação, parece embotada. Se não lhe falta exatamente volume, falta poder de penetração. O baixo (Carlo Cigni, Banquo) é agradável. O tenor poderia ser melhor, mas, como se sabe, o papel do tenor nessa ópera é ingrato. Verdi lhe deu uma aparição breve (consta que na época não tinha bons tenores à sua disposição, então precisou abreviar o papel de Macduff): uma ária meteórica que, no entanto, se destaca pela beleza melódica e — mais que isso — pela interrupção brusca e luminosa de um clima que vem se tornando cada vez mais tenebroso. Fica então o dilema de confiar um papel pequeno, mas deslumbrante, a um grande tenor ou de deixar que o papel se obscureça na voz de um tenor menos arrebatador. Difícil dilema.
Não gostaria de encerrar estas linhas sem falar da casa. Mas me abstenho, para não terminar este artigo de forma desagradável.