Na semana de 18 a 24 de dezembro li dois livros: Domingos sem Deus, de Luiz Ruffato, e O Estranho no corredor, de Chico Lopes. Ruffato eu considero — se não disse até agora, fica dito aqui — um dos grandes escritores da atualidade no Brasil. Em Domingos sem Deus ele se esmera na ternura, não há uma ênfase formal tão grande como em Eles eram muitos cavalos. Domingos sem Deus parece querer se concentrar em histórias humanas, ir fundo no que de mais sofrido existe nos sentimentos do desterrado. É um livro que terminei com um sentimento misto: melancolia pelas personagens e alegria por ter lido um texto tão bom. Então paro por aqui, pois não quero chover no molhado.
Passo a falar de Chico Lopes.
Chico sempre escreveu contos. O Estranho no corredor é a primeira obra mais longa. Eu classificaria como novela. Nela, Chico se dá a uma narrativa mais desenvolvida, porém conservando do conto a característica concentração temática. O pequeno número de personagens, por si só, não bastaria para que se deixasse de classificar a obra como romance; o que mais determina a sua classificação é que essas personagens giram todas em torno de um núcleo narrativo apenas, não determinam uma abertura no leque da fabulação, o que estruturaria a obra como romance. Tia Ema, o desconhecido do corredor, dona Graça, Russo, Cruz, Carla e o protagonista anônimo são os que mais se evidenciam. O anônimo é apenas chamado de teacher ou de professor por seu interlocutor privilegiado, Russo.
Há aí uma boa razão para criar um protagonista anônimo. O Estranho no corredor conta a busca de uma identidade, no caso uma identidade masculina. Chico Lopes sabe muito bem ingressar numa zona limítrofe em que a masculinidade só se afirma como tal por contraste com seu outro: não a feminilidade, mas a castração. Mundo em que, como componente dessa afirmação, entra também em jogo a homossexualidade. Mas em negativo. Ou melhor, cria-se uma gangorra: numa das pontas, a atração; na outra, a repulsão. Enfim, um equilíbrio precário no qual um elemento precisa do outro para não cair por terra.
O protagonista anônimo é uma construção. Uma autoconstrução lenta, que vai se definindo para o leitor página a página, até entregar um nome, mas o nome do pai, o execrado nome-cognome-sobrenome do pai. A tríade pai-mãe-filho está irremediavelmente rompida, substituída pela dualidade tia-sobrinho, em que “tia” deve ser lido como não-mãe/não-pai. Portanto, uma mulher que se define negativamente, definindo também negativamente a masculinidade do sobrinho.
Tia Ema não está sozinha na sua categoria. Tem uma contrapartida mais maternal: dona Graça. São elas as velhas, as detestadas velhas das quais não era possível prescindir, as que estavam por toda parte, as que eram obsessivamente limpas ou então eram “insuportáveis, tiranas, cheiravam a pouco banho e a roupas sem lavar havia muito tempo…”. Tia Ema e dona Graça são, portanto, duas moedas de uma mesma cunhagem, que aquele anônimo vai intercambiando em seu trajeto. Trajeto que também só ganha contornos por definições negativas, pela conciliação de opostos: ele/Russo, Jesus/diabo, pai/o estranho… até que pai/estranho/diabo/Jesus formem um amálgama indecifrável, o enigma Homem, num coro regido pela batuta irreverente de Russo, o macho presente ou ausente, em perene autoafirmação na indefectível gangorra.
O Estranho no corredor é uma lição de sensibilidade.
O ambiente e a época em que a trama transcorre são ingredientes típicos de Chico Lopes: o anacrônico de alguma década passada, perdida para sempre, o bisonho de “uma desambição crônica, uma crônica falta de imaginação e vontade de gestos, atos maiores”, num lugar onde uma pessoa passa pela outra sem se cumprimentar “para fingir que a cidade ficou grande”.
Chico Lopes vale a pena ser lido. Nele se encontra o prazer de ir montando com empatia e delicadeza todas as peças da dor humana.
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