Agosto de 1870: a guerra franco-prussiana foi declarada em julho, e os franceses já somam derrotas. Nas províncias, pouca gente tem conhecimento disso: o governo de Napoleão III censura informações. Mas correm boatos, como por exemplo o de que o país está coalhado de espiões prussianos, acobertados pela nobreza em conluio com o inimigo.
Numa aldeia chamada Hautefaye vive uma família da pequena nobreza; nela, há um rapaz chamado Alain de Monéys, sujeito ativo e bem-intencionado que exerce alto cargo na prefeitura da vizinha Beaussac. No dia 16 ele resolve ir tratar de negócios na feira de gado de Hautefaye, ponto de reunião dos produtores da região. Chegando lá, fica sabendo que um primo — que anda atazanando o povo do pedaço com afirmações de que os franceses estão perdendo a guerra — acaba de sair correndo da feira, para fugir da ira dos camponeses que o têm por traidor, espião dos prussianos, defensor da república. Alain então resolve explicar aos camponeses que a história não é bem assim e, conversa vai, conversa vem, acaba cercado por uma multidão enfurecida, que lhe atribui os mesmos delitos do primo. Afirma-se até que ele, como o primo, disse “Abaixo Napoleão, viva a república”. Todos acreditam nisso, e começa a pancadaria. Por mais que ele brade “Viva o imperador”, que os amigos (poucos) digam que ele não é espião, que gritem o nome dele (consta que tinha ajudado muita gente lá), informando que dentro de alguns dias ele vai se juntar ao exército francês na fronteira (já está até alistado), ninguém ouve. Ele é espancado com paus, tamancos e aguilhões. Tentam enforcá-lo numa cerejeira, o galho se quebra, eles desistem (mas por uma causa bem mais nobre: antes de morrer, ele precisa sofrer). De nada adianta o padre sair de revólver em punho em sua defesa: a multidão é grande, o clérigo procura contemporizar oferecendo o bom vinho do altar. O prefeito, procurado para lhe dar proteção, intimida-se. A coisa prossegue. Ele é arrastado para uma oficina de ferreiro, onde o amarram e continuam batendo, desferindo golpes na cabeça, no rosto, nas pernas. Os amigos conseguem furar o bloqueio, levá-lo para um aprisco, mas os furiosos arrombam a porta e o arrastam para a feira. Nessas alturas a cabeça dele já é uma bola de sangue. Seus poucos defensores tentam levá-lo para dentro de uma hospedaria, mas o hospedeiro amarela, acha perigoso dar-lhe abrigo e, na pressa de bater a porta, prensa o tornozelo de Alain. Que desmaia. Já se acredita que morreu, quando, recobrando-se subitamente, ele consegue agarrar uma estaca para se defender. Um dos agressores a arranca facilmente de suas mãos, ele se esconde debaixo de uma carroça e lá continua apanhando, até receber uma estacada mortal na nuca. A multidão cai em cima do moribundo. Os chefes do bando, quatro, o seguram, cada um por um membro, com a intenção de esquartejá-lo. Mas não conseguem. Então o arrastam para um local onde se costuma festejar São João e lá o queimam. Vivo ainda, ao que tudo indica. Com fósforos que seriam reembolsados pelo imperador, segundo propalam. Parece que houve até canibalismo.
A polícia chegou no dia seguinte. Cerca de cinquenta pessoas foram presas. Os quatro chefes foram condenados à morte. Outros, à prisão perpétua com trabalhos forçados. Outros ainda, apenas à prisão. O prefeito caiu. Parece que também no dia seguinte todos haviam caído em si. Mas a coisa estava feita. Ficou o trauma. Ainda hoje se fala disso na França. Tentou-se até mudar o nome do lugar.
Em O idiota da família, Sartre, analisando entre outras coisas a hostilidade coletiva contra os bodes expiatórios (no caso, em escolas), diz que com essa atitude os hostilizadores procuram anular, na pessoa do outro, toda e qualquer forma de anormalidade que os assuste. Aceitando-se essa explicação, pode-se dizer que o caso do burgo francês seria uma hostilização desse tipo, mas levada ao paroxismo; a anormalidade assustadora, lá, era a derrota ou sua apavorante ideia, que precisava ser aniquilada junto com o corpo imolado de Alain de Monéys. Não importava se ele de fato era espião e — o que não é pouco — não importava se era lícito tratar daquele modo o mais pernicioso dos espiões: a fúria dos bons é sagrada, seus deuses exigem sangue.
Em outro panorama — o sul-sudeste brasileiro —, os descendentes de japoneses têm lembrança de coisa parecida ocorrida uns oitenta anos depois. Para os integrantes do conhecido shindo renmei, quem afirmasse que o Japão havia perdido a guerra merecia a morte.
De comum entre os dois fatos, a incapacidade de aceitar a realidade da derrota. De diferente, o tempo de execução e o número de vítimas: no primeiro caso, uma explosão de fúria que durou algumas horas, com um morto; no segundo, um ressentimento requentado que durou anos e matou dezenas de pessoas, além de ferir mais de uma centena.
Outro paralelo interessante entre os dois casos é o papel desempenhado pela palavra escrita. Consta que uns dias antes do linchamento de Alain de Monéys, seu primo tinha despertado a ira de um grupo de aldeões analfabetos ao anunciar o conteúdo de notícias chegadas da capital pelo correio: o exército francês estava sendo obrigado a recuar. Seu público não acreditou. No texto escrito? Não! No intérprete. Para eles, a fonte do texto era sagrada: a capital, a sede do Império. No caso dos japoneses, que não eram analfabetos e não precisavam de intérpretes, a única opção era duvidar da imprensa: os jornais mentiam. No primeiro caso, o intérprete mentiroso merecia a morte; no segundo, devia morrer quem acreditasse nas mentiras escritas.
Mais um paralelo interessante: nos dois casos pouco importava quem morresse, desde que alguém morresse. Quando o intérprete das notícias da capital escapou em Hautefaye, morreu o primo no lugar dele; para os japoneses, o crime de “acreditar na derrota” era suficiente.
Em ambos os casos, estava em jogo um sentimento poderoso: o orgulho nacional.
Uma das lições que dá para tirar das duas histórias é a fragilidade da noção de verdade. Para simplificar, verdade, nos dois episódios, seria o fato, o acontecimento real, o empiricamente constatável: estamos perdendo sim ou não? Essa pergunta foi solenemente omitida, não cabia, contrariava as crenças forjadas nas profundezas de cada ser sem que ele saiba como. Em certas circunstâncias, como essas, ninguém indaga o fato. E — ironia — esse também é um fato. Fato que precisa ser engolido por quem tem a crença de que a verdade dos fatos sempre predomina nos juízos racionais dos humanos. Não, isso nem sempre ocorre. Pode ser até que em geral não ocorra. Pode ser que na maioria das vezes as pessoas busquem confirmar suas crenças ao arrepio dos fatos, ou mesmo criando fatos outros que as confirmem. Assustador, não?
Não chega a ser surpresa para quem já parou para pensar no assunto. Quantas pessoas terão condições de verificar friamente se seus juízos têm fundamento em fatos ou em crenças? Mas não vou enveredar por esse caminho, não cabem aqui considerações sobre a diferença entre juízo, crença, opinião e coisas semelhantes. O objetivo foi só lembrar dois casos emblemáticos em que uma brutal confusão levou a um fim horrendo.
É tão entranhado e absconso esse comportamento (por isso mesmo poderoso), que a manipulação de crenças e desejos pode render ótimos frutos… ou lucros. Os publicitários sabem disso. Goebbels também sabia.
Mas, voltando a Hautefaye, houve quem interpretasse a explosão dos camponeses como manifestação de uma hostilidade de classe: achavam eles que os nobres, com quem não simpatizavam nem um pouquinho, estavam conspirando com o estrangeiro, como, aliás, haviam feito durante a Revolução Francesa. É uma explicação plausível. Mas, para que a fúria explodisse, esse combustível antigo precisou de um estopim. No caso, a meu ver, a irreverência de alguém para com um ente sagrado, uma autoridade suprema, sacralizada: o imperador. E — não esqueçamos — havia também um imperador sagrado para os japoneses do Brasil. E a sacralidade dessa autoridade desafiada imbuía os executores de santidade de intenções. Intenções santas que levaram a ações violentas.
“Violência santa” é uma figura que poderia ser classificada como oximoro. O objetivo do oximoro é causar surpresa com a união de termos contraditórios. Mas esse já não causa surpresa, por força do hábito. Para muitos, violência e santidade não são contraditórias. Essa transformação não aconteceu sem certa ginástica mental. A não aceitação da violência, na cultura cristã, tem como base o postulado de que a violência não se justifica, nem em legítima defesa. O primeiro passo da evolução foi aceitar a violência; o segundo, santificá-la. Como foi feito o processo de santificação? Com a demonização do oponente. Com esse procedimento grosseiro, a santidade de uma ação passa a ser diretamente proporcional à satanidade do oponente. O método é infalível. Tão infalível que a Igreja, apesar de fundada nos preceitos cristãos da não violência, no século XI conseguiu santificar a guerra contra os muçulmanos demonizados e empreender as cruzadas, sem se sentir em conflito com as bases sobre as quais tinha sido construída. Em mil anos de peripécias doutrinárias chegou-se a isso. Não é pouca coisa.
A demonização tem tantas faces quantas necessárias. Nas cruzadas, o demônio tinha o nome de sarraceno; para os aldeões franceses, prussiano; os japoneses, mais sutis, chamavam o outro lado de “coração sujo” (quem tinha coração sujo precisava ter a garganta lavada, ou seja, ser degolado). Riscando-se o “outro” do rol do humano, portanto do divino e do bem, tudo se justifica.
Costuma-se dar a isso o nome de maniqueísmo. Exemplos desse comportamento não faltam em nossa história, tão cheia de guerras de religião. A inquisição, por exemplo, foi uma prática institucionalizada do maniqueísmo, talvez a mais homicida que se conheceu. Hoje nosso comportamento é diferente? Bem… nem tanto. Ou não tanto quanto seria de se esperar. O pensamento maniqueísta está tão incrustado em nossa cultura que é difícil pensar de modo mais dialético, digamos. É difícil ver, por exemplo, que o homem faz as coisas e as coisas fazem o homem. Ou, em outras palavras, que nada é puro e isento de influências. Ou, em palavras mais diretas, que Bem e Mal se interpenetram constantemente, não existem em estado puro e — quem sabe? — talvez não passem de mais uma de nossas crenças, em nome da qual matamos.
Parece claro que o maniqueísmo é intrinsecamente antidemocrático. Não por acaso é tão difícil aprender a democracia. Para o maniqueísta, a liberdade só vale para ele; se a ideia do outro não é a dele, o que ele combate não é a ideia, é quem a defende; se um livro foge ao que ele tem por certo e bom, que seja queimado ou estigmatizado; se alguém erra ou delinque, que seja extirpada toda a sua raça, a sua tribo, o seu partido. Se essas ações mais drásticas não puderem ser executadas em vista das coerções do Estado de direito, então o arauto do bem lançará mão de sucedâneos, subterfúgios, sofismas, calúnias. O maniqueísta não conhece o diálogo, só conhece o ataque, o alijamento, a eliminação.
Talvez dê para entender por que a democracia nasceu na Grécia: o sistema mitológico deles não conhecia bem e mal. Aprendemos erroneamente na escola que os gregos adoravam deuses que agiam movidos por paixões humanas. Em primeiro lugar, não adoravam. Em segundo lugar, seus deuses eram uma sutil representação do cosmo e do homem, tal como tudo é, e não como deveria ser segundo um roteiro traçado por eleição.
Enfim, para o maniqueísta, a vida é uma pista de duas mãos paralelas que nunca se encontram: ele mesmo está sempre na mão certa.