Para compor Il Trovatore (O Trovador) Verdi baseou-se na peça homônima (El Trovador) do espanhol Antonio García Gutierrez, escrita em 1836. Pleno romantismo. A ópera de Verdi estreou em 1853, quando o romantismo começava a perder fôlego em literatura, mas não em música. Verdi tinha 40 anos. Era uma fonte inesgotável de melodias, ricas, muitas, inesquecíveis, geniais. Il Trovatore é uma boa amostra desse período (bem diferente da próxima ópera do repertório deste ano, Falstaff, de 1893, prevista para abril).
A apresentação que vi, ontem dia 15 de março, contou com o seguinte elenco (registro apenas os principais): Conde de Luna, Alberto Gazale, barítono; Leonora, Hui He, soprano; Azucena, Marianne Cornetti, mezzo soprano; Manrico, Stuart Neill, tenor. A regência foi de John Neschling, e a direção cênica, de Andrea De Rosa.
Começo pelo fim, falando da direção cênica. Esse é o nó de toda e qualquer apresentação de ópera. É ela que dá tom, colorido e sentido à composição global. É ela que guia a atenção do espectador, que eclipsa umas coisas e lança luzes sobre outras, suscitando interpretações para além do texto do libreto, é ela, enfim, que torna o espetáculo brilhante ou insosso. Quando um ouvinte costumeiro de ópera vai ao teatro, o objetivo é o espetáculo, a vibração humana, com todos os acertos e erros de qualquer apresentação ao vivo. E o que vê, com enorme frequência, é decepcionante. Incluo nessa lista a presente montagem.
A impressão é de pobreza. Mas não pobreza como sinônimo de despojamento intencional, com que alguns diretores extraem do libreto o sumo e rejeitam o bagaço, e sim uma cenografia sem imaginação, que não soube sair do óbvio e, ainda por cima, omitiu elementos importantes dos cenários tradicionais (exemplos: o acompanhamento dos ferros no coro dos ciganos, a espada que Azucena empunha, dizendo querer que o filho a crave no peito do conde, a morte de Manrico). Neste último exemplo introduziu-se, ainda por cima, uma inovação falseadora: Manrico é posto sobre uma fogueira onipresente no palco, contrariando o que diz o próprio libreto na voz do conde, que para ele destina o cutelo (aliás, corretamente, pois a fogueira era considerada uma morte degradante, enquanto o cutelo tinha caráter de pena política, e Manrico era prisioneiro político).
Por isso, achei surpreendente a seguinte declaração de Andrea De Rosa (no site do jornal O Estado de São Paulo): “Se posso definir minha produção em uma preocupação, é a de, respeitando o texto, abandonar as convenções que há tantas décadas estão presentes em interpretações dessa ópera.” Se por “abandonar as convenções” ele se referir à ideia de engavetar os cantores em compartimentos de um armário gigante (num dos quais Hui He foi obrigada a ficar o tempo todo em que cantou Tacea la notte placida com cabaletta e tudo), sou forçada a preferir as “convenções”.
Diante de tão surpreendente declaração de Andrea De Rosa, convido a assistir ao espetáculo quem quiser dirimir quaisquer dúvidas. Estará em cartaz até o próximo dia 22.
Passo aos cantores.
Stuart Neill é uma figura corpulenta, simpática, que tem uma voz de timbre agradável. No youtube ele pode ser encontrado a cantar a famosa Di quella pira, com o não menos famoso dó de peito no final. Esganiçadíssimo. Confesso que vi esse vídeo antes de ir à ópera e fiquei um tanto frustrada. Não porque adore essa ária e vibre com agudos portentosos, mas é que sempre lastimo qualquer artista que não consiga fazer o que quer que se proponha. Aliás, um parêntese: o tal dó de peito não está na partitura. Consta que algum tenor o introduziu (ainda se discute quem teria sido), e que daí por diante o cantor que se preze não deixa de praticá-lo para não parecer incompetente. Grande fardo para tenores verdianos. Mas, voltando a Stuart Neill, devo dizer, a bem da verdade, que o dó de ontem não saiu esganiçado. Talvez ele estivesse num dia mais feliz. Abstraindo essa ginástica vocal, sua interpretação foi em geral bem satisfatória e talvez tivesse sido mais satisfatória com uma direção cênica mais criativa.
Hui He é uma linda chinesa de voz bonita. Como se vê, em termos de timbre o elenco está bem servido. Para Leonora Verdi criou uma partitura cheia de variações dinâmicas que, se não exigem as loucas extensões vocais de uma Abigaile (Nabucco) ou de uma Odabella (Attila), não sobrevivem sem grande esmero técnico e controle da respiração e da emissão, para bom desempenho das alternâncias de forti e piani que conferem beleza especial às aparições dessa personagem. Hui He cumpriu. Segundo consta, tem sido muito aplaudida em Madama Butterfly.
Alberto Gazale é o Conde de Luna. Na interação das personagens, quando se aborda esta, as coisas começam a ganhar mais complexidade, que se torna máxima em Azucena. A complexidade do Conde de Luna decorre do fato de ser movido cegamente por uma paixão irresistível: a construção verdiana dotou essa figura de um pathos tão eloquente, que ele não desperta ódio, mas até certa empatia. Algo que é reforçado pelas belíssimas intervenções melódicas que acompanham suas aparições. Tudo isso faz dele um personagem importantíssimo, de uma força imensa na trama, o que exige uma interpretação imponente, presença marcante. Não sei se se pode dizer que Gazale respondeu a essas exigências. Tenho minhas dúvidas. Mas, de novo, não foi ajudado pela direção cênica.
Não por acaso deixei Azucena para o fim. A interpretação de Marianne Cornetti foi primorosa. E reconhecida pelo generoso público brasileiro, que não nega aplauso a ninguém, mas sabe reconhecer quem se sobressai. Cornetti conseguiu até driblar a sensaboria da montagem e criar climas altamente dramáticos. E grande parte da (in)coerência da trama assenta nela, que balança o tempo todo entre o amor por um filho que ela não deveria amar, porque não é seu, e sim daquele que condenou sua mãe à fogueira, e porque o erigiu em instrumento de sua vingança. Mas ama, apesar de tudo, embora não o suficiente para salvá-lo. Todo o caráter rocambolesco do enredo está concentrado nela, que, apesar disso, precisa ser convincente. Cornetti consegue.
Algumas palavras finais sobre o enredo e sua compreensão. Trata-se de um dos mais complicados do repertório operístico verdiano, que tem outros exemplos de bons emaranhados. O grande problema deste é a razoável quantidade de fatos que só se apresentam em rápidas alusões, como a batalha que deixou Manrico ferido — o que explica todo o desenrolar dos fatos seguintes — e os conflitos políticos subjacentes, cujo conhecimento poderia elucidar o fato de um trovador filho de cigana ter uma tropa sob seu comando, entre outras coisas. Falhas do libreto, sem dúvida. Tudo isso culmina num final sumário que dá a impressão de falta de acabamento. Para um neófito em ópera, o uso da legenda é providencial. Desde que esta seja boa. No caso, foram envidados todos os esforços. No saguão do teatro, era vendida a preço módico (R$ 5,00) uma boa publicação com todos os dados do elenco, além de sinopse e (fato inédito) o libreto completo traduzido. Pena que a tradução deixe tanto a desejar. Não costumo fazer esse tipo de comentário sobre o trabalho de colegas, mas no caso não se trata de um colega. Trata-se de Hugo Casarini, que não é tradutor, é músico. Um dos principais obstáculos à boa compreensão é que a ordem das palavras nas frases segue exatamente a ordem italiana. Só isso, numa legenda, já é suficiente para tornar as coisas ininteligíveis. Legenda é aquele texto que o espectador precisa entender assim que bate o olho. Legenda é aquele texto que precisa veicular o sentido com a maior rapidez possível, sobretudo em textos ágeis. Não é o que acontece. Conheço a ópera há décadas, não preciso de legendas, mas por vício profissional eu a observei com frequência. Quem dependesse dela estaria frito. Isso para não falar dos equívocos semânticos, do uso canhestro dos pronomes e das derrapadas verbais. Seria interessante que os teatros do Brasil e os responsáveis por legendas de vídeos de ópera contratassem profissionais responsáveis, e não músicos. Tradução é técnica, e o amadorismo sempre redunda em produtos indigestos.
Enfim, não teria dedicado um parágrafo todo à legenda se a prática de entregá-la a diletantes não acabasse prejudicando a fruição do espetáculo para aqueles que estão tentando se familiarizar com o mundo tão complexo da ópera.
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