Às vésperas de mais uma apresentação da ópera Carmen no Theatro Municipal de São Paulo, tive vontade de voltar à novela que lhe deu origem e fazer um cotejo entre as duas versões: a original, de Mérimée, e a ópera de Bizet. Eis aí um trabalho que eu gostaria de fazer com várias óperas compostas a partir de textos em prosa, mas não acredito que venha a conseguir algum dia. Por que os textos em prosa? Porque os originais poéticos podem ser transpostos de maneira mais direta, o trabalho do libretista consiste mais em selecionar o que deve ficar e o que deve sair, podendo valer-se do original ou de sua tradução. A adaptação de um texto em prosa exige um trabalho complementar: é preciso criar um texto poético cantável e — mais difícil — transformar uma narrativa que contém inúmeros elementos subjetivos (impressões, conceitos e informações marginais fornecidas pelo narrador ou pelas personagens) em texto direto para a cena. Ou seja, diante de duas linguagens tão diferentes, o trabalho já não é apenas de selecionar o que fica e o que sai, mas também de “transcriar”, para usar um termo mais próximo de nós.
O interesse dessa comparação não é apenas literário, mas também abre caminho para um estudo de mentalidades.
Primeiro, um pouco de cronologia.
A literatura francesa do século XVIII já havia provocado alguns escândalos, afeiçoada que andou a personagens e fatos bem pouco convencionais, com Sade, Chordelos de Laclos e o abade Prévost, por exemplo. No início do século XIX, com a restauração e a exacerbação do clericalismo, as coisas se tornaram mais pudibundas. Mas não por muito tempo. A geração que começou a escrever após 1830 já deu um jeito de preparar o caminho para o que viria após 1850. Prosper Mérimée faz parte dessa leva. Flaubert veio na rabeira. Mas Mérimée sempre foi visto como escritor menor. Nasceu em 1803, um ano antes de Victor Hugo, do qual, porém, difere radicalmente. Carmen foi publicada em 1847; Os miseráveis, só quinze anos depois, sem nenhuma personagem feminina capaz de provocar escândalo. Madame Bovary vem a lume apenas nove anos depois, e a escandalosa Naná, em 1879. A ópera estreou em 1875. Como se vê, 28 anos depois da publicação da novela e apenas quatro anos após o romance Naná, de Émile Zola.
No entanto, à cena chegaram retratos e fatos diluídos de Carmen, a novela. Uma aguada, digamos. O que explica isso? Que critérios guiaram os libretistas (Henri Meilhac e Ludovic Halévy) nas seleções que fizeram? Sem dúvida os embates com a censura tiveram alguma influência no caso. Embora a principal preocupação dos censores fosse com questões políticas, houve períodos de forte ênfase nos costumes. Até 1906 vigorou o princípio de que quaisquer peças deviam poder ser vistas por todos os membros de uma família honrada. Princípio nem sempre observado à risca. Se na ficção de Zola Naná causa sensação por ter representado Vênus nua, é de se supor que o teatro francês da época já fosse bem desenvolto, para dizer o mínimo. Mas, pelo que se conhece da produção operística do tempo, fica claro que nela a realidade (ou irrealidade) era outra. Talvez não apetecesse aos próprios compositores a escabrosidade de certas tramas que frequentavam a literatura desde muito tempo. Talvez simplesmente fosse bom evitar problemas com a censura, já que os teatros de ópera eram frequentados pela elite feminina mais conservadora, que fazia questão de manter a aparência de recato, de “distinção”. Quanto aos homens — seus maridos em muitos casos —, sabe-se que em certos dias frequentavam os salões onde se cultivava a arte “séria” e, em outros, reuniam-se no demi-monde, aquela zona mista de meretrício e arte, com alguns pontos de intersecção com a alta sociedade. E os teatros eram um de seus pontos de encontro. É nessa algazarra que medra Naná, a personagem. É na margem provinciana e tediosa desse mundo que se esgueira Emma Bovary. Mas não é aí que Mérimée vai buscar Carmen. É na Espanha que ele a encontra.
Como, aliás, era à Espanha que franceses e italianos recorriam quando queriam caracteres esdrúxulos. De que outro solo poderia brotar Don Ruy Gomez de Silva, o nobre obstinado que leva Hernani a suicidar-se para cumprir uma promessa? De onde mais surgiria um drama como o de Don Álvaro o la fuerza del sino, do duque de Rivas, depois transformado em La forza del destino por Verdi? Mas não é entre os obstinados e enrijecidos por normas de pundonor que Mérimée encontra Carmen. Como eu disse acima, Mérimée não era Hugo.
Consta que a história foi inspirada por um relato que ele ouviu de sua amiga, a condessa de Montijo. Mérimée era um sujeito requintado e anglófilo. Além de escritor, era historiador e arqueólogo. Sua escrita, seca, não era dada a circunstâncias, ambientes e detalhes. Esses dados devem bastar para se entender o contraste que há entre ele e seu contemporâneo mais ilustre, Victor Hugo, cuja luz sem dúvida contribuiu muito para ofuscá-lo.
O modo como ele constrói a trama diz muito sobre o tipo de abordagem que parece convir a um mundo exótico. O narrador (arqueólogo e francês como Mérimée) conhece José e Carmen na Espanha. As peripécias desse conhecimento não cabem aqui e estão ausentes da ópera. Numa segunda viagem, o narrador fica sabendo da prisão de José e vai ter com ele. Começa aí a narrativa de José, em primeira pessoa, que vai até o fim da novela. A partir do momento em que José se põe a narrar, termina o distanciamento blasé do francês e tem início o relato apaixonado do espanhol. Só os fatos dessa narrativa estão na ópera.
Carmen, personagem de Mérimée, tem em comum com Naná, personagem de Zola, a incapacidade de ser fiel. Mas a diferença de ambientes em que cada uma delas é retratada determina outras características. Se Naná vive à margem de uma elite na qual nunca se integrará, Carmen é uma pária. Carmen é cigana. Carmen é ladra, contrabandista, cúmplice de ladrões e assassinos. Carmen é casada. Carmen tem um marido em quem reconhece os direitos que seu meio lhe outorga, como por exemplo o de vida e morte sobre a mulher. Não faz parte desse convívio, porém, a fidelidade estrita. Carmen não ama o marido, mas o tira da cadeia. O marido de Carmen é feroz, homem repugnante de corpo e alma que, por exemplo, desfigura um companheiro moribundo com vários tiros no rosto, para impedir que a polícia, no encalço, o reconheça. Carmen pratica a prostituição, como atividade paralela às de seu bando. Na novela de Mérimée, há um local específico para os encontros eróticos e venais de Carmen. Bem mais íntimo que uma taverna.
José, por sua vez, não tem mãe doente, e mal se sabe se tem mãe. A única alusão é um pedido dele ao narrador arqueólogo, para que entregue uma medalha a uma “boa mulher” em Pamplona. José não tem noiva. Bizet poderia ter-nos poupado de Michaela, mas decerto era preciso ter uma voz de soprano à altura da mezzo-soprano que encarnaria Carmen. Suas árias adocicadas parecem ter caído no gosto do público. De quebra, a virtude em oposição ao vício. José mata o marido de Carmen, para ficar com ela (“O que foi que fez? — exclama Dancairo/Dancaïre. — Se você lhe tivesse pedido Carmen, ele a teria vendido por uma piastra”). José nunca entrou em luta com o toureiro (que, aliás, na novela se chama Lucas, não Escamillo). Este se dá mal na tourada a que Carmen assiste, é derrubado com cavalo e tudo pelo touro. Pouco heroico! E, quando José pergunta a Carmen se ela amou o toureiro (aquela aventura já passou), ela diz que um pouco, menos do que amou José, e que agora já não o ama. Aliás, não ama ninguém.
Carmen, ao ser presa, não seduz José por via do puro erotismo, falando de algum novo namorado na taverna de Lilias Pastia: Carmen apela para os brios do navarro, dizendo-se sua compatriota, falando sua língua, perguntando se ele não vai ajudar alguém da sua terra. O erotismo está no ar. Na verdade, o erotismo está em José, enquanto narra sua história, enquanto fala dos efeitos que a figura dela exerceu sobre ele, de sua meia cheia de furos, de suas pernas inesquecíveis.
Enfim, a Carmen de Mérimée é uma Carmen realista. E fatalista. O fatalismo da Carmen da ópera é apenas acenado. A Carmen de Mérimée, deixada a sós numa estalagem enquanto José vai buscar lenitivo numa igreja, não foge. Quando ele volta, esperando não mais a encontrar, dá com ela fazendo seus sortilégios, convencendo-se pela milésima vez de que não pode fugir da morte pelas mãos dele. Está lá, à espera. E a morte não se dá em praça pública, mas num descampado. Ela para, à sua frente, sempre à espera. Ele implora, quer ir para a América, refazer a vida. Ela não quer, ela está bem ali (afinal, Carmen não é Lescaut!) E diz que ele, como seu romi (marido), tem o direito de matá-la. E ele a mata. Depois a enterra e vai entregar-se à polícia.
Como se vê, a história é outra. Mas não é outra só no texto. É outra naquilo que está impregnado no texto e dele emana como odor de um corpo. Tivesse essa ópera sido escrita mais tarde, talvez tivéssemos algo bem parecido com um Wozzeck.
Outro paralelo interessante seria o textual: de que maneira exatamente certos trechos se transformaram em outros, por quais vias. Por exemplo: toda a ária da habanera não encontra paralelo no texto de Mérimée, a não ser numa breve frase de José. Mas é algo que demandaria um fôlego que não cabe aqui.
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