Eu vivia meio distante dela, de minha avó analfabeta, que me criou até os dez anos de idade com afagos de mãe. Por problemas familiares, estávamos afastadas, morando cada uma de um lado da cidade: ela adoentada, e eu numa idade que não me permitia ainda plena capacidade de ir e vir. Foi quando soube que ela estava hospitalizada, não me lembro por qual doença. Lembro que peguei vários ônibus e fui visitá-la numa tarde chuvosa. Entrei no quarto com uma de minhas tias: ela dormia. Eu nunca tinha visto aquela mulher tão entregue, tão desarmada e derramada em sono tão profundo. Logo me informaram que não acordaria tão depressa, estava sedada. Fiquei ali parada, olhando para ela, abafando o sentimento de frustração, passando em revista aquela figura de todos os meus bons momentos da infância… Ela parecia só estar tirando um cochilo, e a frustração foi se misturando à ternura das lembranças, maçã comprada junto ao ponto de ônibus todos os dias, cabelo meu penteado com capricho antes da ida à escola, vestidinho costurado às pressas para eu poder ter uma roupinha nova em algum dia especial… momentos de uma época em que os cabelos dela ainda não eram tão grisalhos, as rugas do rosto nem tão fundas, e o peito sobre o qual eu tinha deitado tantas vezes a cabeça não andava tão descarnado. A mão esquerda pousada na altura da cintura ia subindo e descendo no andamento da respiração… a mão esquerda, o anular esquerdo… levei um susto… no anular esquerdo não vi o brilho do ouro das duas alianças grossas que ela usava, que toda viúva usava, na união eterna com o seu finado. O que vi foi o reflexo baço daquele anel ordinário com a inscrição “ouro para o bem do Brasil”, que o novo regime entregava às pessoas que levassem suas joias para subsidiar não sei quê. Olhei inconformada para minha tia, mas ela estava distraída, conversando com alguém, e achei que não valeria a pena, diante de estranhos, em tempos sombrios, mostrar a minha indignação de adolescente imatura diante de fatos políticos que eu não haveria de entender. Minha avó tinha sido contaminada pela propaganda mentirosa do novo regime, e essa certeza me levou à beira do pranto. Sobre aquele novo governo eu já tinha aprendido muito, e o modo como eu tinha aprendido tanta coisa não é nada que caiba aqui, pois aqui só me cabe falar de minha avó analfabeta, aquela que encontrei adormecida num leito de hospital com uma bugiganga enfiada no dedo em lugar de duas alianças de ouro, as únicas joias que se dava o luxo de ter uma viúva pobre.
Quando saí de lá, quase fim de tarde, ela ainda dormia. Passei uma semana triste, daquela tristeza que vai amainando devagar, mas nunca dá o fora. Forte e persistente era a raiva, quando pensava que minha avó analfabeta tinha sido engambelada por um bando de usurpadores.
Voltei lá na semana seguinte, ela estava acordada. Depois do beijo e das primeiras trocas de carinho, não demorei a perguntar pelas alianças. Não fiz nenhuma questão de esconder meus sentimentos a respeito. Ela me olhou divertida e disse:
— Imagina se eu ia dar minhas alianças pra essa gente. Guardei lá em casa. Tirei do dedo quando estava me aprontando para vir porque sabia que ia tomar anestesia e tinha medo de ficar sem elas, vai saber quem cuida da gente numa hora dessas, se é honesto ou não. Então pus essa aí, que apareceu lá em casa nem sei como, porque eu não ia ficar sem aliança. Mas imagina se eu ia dar minhas alianças pra essa gente.
E virou a cabeça, repetindo para a minha tia, do outro lado da cama:
— Imagina!
Assim era a minha avó analfabeta.
Comments