Por que Paulina Chiziane diz: “Não vou responder o que é literatura feminina”? Consta aqui que ela disse isso numa palestra em Curitiba. Mas não se explica a razão da negativa.
Por que Nélida Piñon diz que detesta a expressão literatura feminina?
A escrita é, por natureza, ambígua. Portanto, ela circula pelos sexos do mundo. A escrita reflete o que nós somos. E ela não aprisiona pelos gêneros. Escrever é obrigatoriamente visitar o coração do pensamento. A mulher, embora recente no mundo canônico da cultura, é herdeira de todos os saberes humanos. Ela tem um coração tão polissêmico quanto o coração masculino. Você não fala em literatura masculina; você fala em literatura, e de preferência boa literatura. Eu acho que a literatura da mulher ocupa todos os espaços da humanidade. Isto dito, o que há são características, não de mulher e de homem, mas de escritor.
Na brevidade da entrevista, Nélida Piñon parece ter dito o que deu. Poderia ter dito mais? Certamente.
Também não gosto da junção dessas duas palavras. Não, claro, por uma questão de estética, mas porque a expressão não passa sem explicação. E qualquer slogan, nome, designação que precise de explicação não serve, manda a mensagem errada ou não dá o recado.
A pergunta por trás dessa rejeição é: literatura feminina se refere ao texto ou ao contexto, ao intrínseco ou ao extrínseco? Literatura feminina é aquela que tem temática feminina (= o intrínseco)? Se for, não se aplica a toda e qualquer literatura escrita por mulheres, porque as mulheres não andam escrevendo só sobre mulheres. Se não for, se quiser dizer literatura escrita por mulheres (= extrínseco), precisa de explicação.
Porque, por mais que se queira dizer que literatura feminina se refere à literatura escrita por mulheres (mulher, pessoa social, contextualizada), o adjetivo feminina está inapelavelmente modificando o substantivo literatura, e aí não há como fugir: a qualidade remete à literatura, a seu valor intrínseco, e não à pessoa social de quem a escreve, a seu valor extrínseco.
As implicações desse tipo de coisa não costumam ficar só nos lembretes linguísticos. Cito aqui uma implicação prática de expressão interpretada de duas maneiras diferentes, uma intrínseca, outra extrínseca, que não deixa de se assemelhar à discussão em torno de literatura feminina. É a da expressão invisibilidade do tradutor. Essa aí foi cunhada para indicar a marca que o tradutor (não) deixa no seu texto traduzido, no modo como ele trabalha, escondendo-se ao máximo. Desse ponto de vista, muitos acreditam até que invisibilidade de tradutor não existe (eu também acho isso, mas não é esse o assunto agora). Ocorre que, paralelamente, começou a se espalhar o sentido de invisibilidade social da pessoa do tradutor, em discussões em torno de reconhecimento / não reconhecimento de seu trabalho, do valor do que ele faz etc. E, quando você pensa que vai ouvir falar de uma coisa, ouve falar de outra.
Coisas da ambiguidade.
No entanto, a ambiguidade de literatura feminina me parece mais perigosa. Ela circula num momento delicado, quando, mais do que nunca, o foco precisa recair no extrínseco da coisa, na posição da mulher escritora no meio social, na sua subalternidade como reflexo de sua situação secular na relação com os outros atores sociais, e aqui penso não só nos homens. Do ponto de vista dessa necessidade urgente, pode-se dizer que a expressão é infeliz. Em outras palavras, ao contrário da também ambígua invisibilidade do tradutor, que do intrínseco passou a se referir ao extrínseco, literatura feminina precisa remeter ao extrínseco e fugir ao intrínseco.
Não são novas as queixas das mulheres escritoras quanto ao menor apreço de suas obras, por serem de autoria feminina. Não é fácil enfrentar dificuldades que não se dão a conhecer pelo verdadeiro nome. Ninguém sai por aí declarando que o prêmio x não foi dado à obra da escritora y porque os jurados (talvez até inconscientemente, vai saber) preferiram dar o prêmio a um homem; ninguém dirá que a obra de uma mulher enfrenta maior dificuldade de edição por ser de mulher, porque o editor, precisando alocar verba para um só nome naquele momento, tem de escolher entre um masculino e um feminino e dá preferência ao masculino. Ninguém conta que, na livraria, desconfiou que aquele livro escrito por mulher talvez não viesse a satisfazer a sua ânsia de literatura crua e realista. Assim como no caso do racismo, da homofobia e de outros tantos preconceitos, o não dito tem o peso de mil libelos. Mas você tem mais dificuldade para contestar.
É isso o que precisa ser discutido, e é isso que a expressão literatura feminina camufla.
Não foram raras as autoras que se esconderam por trás de nomes masculinos para poderem ser editadas e lidas. São legião os leitores que confundem autor e narrador e terão prevenção contra obras escritas por mulheres. E sempre haverá aqueles que identificam feminino com pieguice. Entendo essas pessoas. Numa sociedade em que "publicação feminina" é sinônimo de moda, culinária, beleza, decoração, saúde da mulher e, no máximo, um sexozinho light, com palavreado fútil e infantil, não é de estranhar que uma literatura autodenominada feminina desperte essas lembranças, por pura associação de ideias.