A sucessão de duas coisas nunca se dá sem o eco de uma na outra. Li Gomorra logo depois de O Filho eterno, e as inter-ressonâncias, para mim, já começaram nos títulos. Filho eterno remete a pai eterno, Gomorra também: intertexto bíblico inescapável.
Mais uma semelhança entre as duas obras: nenhuma delas é ficção no sentido de fabulação do verossímil inverídico. São literatura, no sentido do uso artístico da linguagem escrita. Essa elaboração, apesar de muito mais fluente e compreensível em Tezza (que se vale de recursos eminentemente literários), nunca deixa de estar presente em Saviano (que se vale de material jornalístico), mesmo nas suas descrições mais escabrosas[1]. As diferenças entre eles, nesse âmbito, talvez se devam muito à natureza do entrecho: em Tezza tem-se um processo redentor; em Saviano, uma degringolada para a danação.
Nos dois, conta-se o acontecido. Quando isso ocorre, a narrativa pode ser (auto)biográfica, testemunhal ou jornalística (= histórica). Aqui entra uma diferença entre as duas obras: enquanto Tezza é autobiográfico sem o confessar, Saviano desconfessa o jornalístico e ingressa no testemunhal.
Como entre um modo e outro há pontos comuns, Márcio Seligmann-Silva explica qual a diferença entre eles[2]: “o testemunho não deve ser confundido com o gênero autobiográfico nem com a historiografia; ele apresenta uma outra voz, um ‘canto (ou lamento) paralelo’ que se junta à disciplina histórica no seu trabalho de colher os traços do passado”.
Ou seja: testemunho é o ato de narrar o evento catastrófico, sendo o narrador, em geral, vítima dele. Saviano o faz. Assim como ocorre nos testemunhos do Shoah (um dos paradigmas usados por Seligmann-Silva), em que os diferentes pontos de vista pessoais elaboram uma memória coletiva, em Saviano temos um ponto de vista pessoal que colabora para construir uma história do fenômeno camorra em suas dimensões coletivas. Assim como ocorreu nos testemunhos do Shoah, o de Saviano é testemunho de um sobrevivente (ou ainda-vivente, ou subvivente), e não da verdadeira vítima (aqui e lá emudecida pelo ato criminoso) e dificilmente dos executores. Aliás, a óptica destes últimos, em Gomorra, é em certo momento apresentada, sim, mas por meio de uma reflexão da testemunha-narrador. Pesadas as analogias e as distinções entre os dois tipos de testemunho classificados por Seligmann-Silva, pode-se dizer que o testemunho de Saviano é um lugar entre Zeugnis (alemão) e testimonio (latino-americano). Em Saviano, confirmando o cunho testemunhal, trata-se de reunir os fragmentos e de lhes dar nexo e contexto. Mas por que Saviano é testemunhal, e não jornalístico? Pelo tom. Assim como a música, a literatura modula. O mesmo tema pode servir à tragédia, à comédia, ao drama, à reportagem… A diferença está no modo como o autor e/ou narrador se insere ou deixa de se inserir na trama-texto, naquilo de que participa ou não. Saviano se insere e participa o tempo todo. Insere-se como testemunha e vítima. Como vítima, entre outras, porque são vítimas todos os seres que nascem nos territórios dominados pelo poder camorrista: como vítima solidária que é, não se furta a manifestar revolta, repulsa, raiva, compaixão, pateticismo. Raramente ironia. Como testemunha privilegiada, tem dados numéricos objetivos para apresentar porque é jornalista e participou de investigações dos fatos que narra, mas não há pretensão de descrever fatos com neutralidade jornalística, pois eles não são vistos como simples feitos, e sim como malfeitos. Enfim, Saviano julga, Saviano é um juiz indignado. E não cabe aqui aquilatar a sinceridade ou não de tudo isso: meu objetivo é só expor o que ressalta da análise textual.
Tezza também é juiz: mas de si mesmo, e não de outros, como Saviano. Em O Filho eterno o foco narrativo é elaborado em terceira pessoa, um ele que o narrador não poupa, sobre quem lança enxofre e fogo, com o qual é tão inclemente quanto o Pai Eterno da Gomorra bíblica. Enquanto em Gomorra Saviano é Saviano ou Robbè, ou seja, é eu, ele mesmo, em O Filho eterno não há um Tezza, mas sim um narrador que tudo conhece sobre uma personagem indicada pelo pronome ele ou por o pai. Ora, como é conhecido o caráter autobiográfico da obra, todos sabem por vias extratextuais que essa terceira pessoa é aparente: ele poderia ser substituído por eu, Tezza, e tudo continuaria na mesma. Sim, sabe-se disso. Mas, mesmo abstraindo esse dado, uma análise meramente textual já dá pistas interessantes. A estruturação profunda, que desmente a de superfície, é de narrador-personagem. Por quê? Porque há onisciência a respeito de seu objeto (o ele) e somente deste. Além disso, há protagonismo exclusivo do ele em sua relação com um outro ele, este sim terceira pessoa, o filho, o que tem até nome, mas não é “o conhecido”. Ou seja: narrador = ele ≠ filho. Mas o narrador de Tezza não se indigna, não se apaixona. A onisciência sobre o ele (recurso ficcional) serve para perquiri-lo, descobri-los aos poucos, deixá-lo nu. Como um eu tem muita dificuldade para se desnudar e, se o faz, periga cair no confessional ou na autocompaixão, Tezza recorre ao exame telescópico: a distância temporal é figurada pela distância pronominal.
Saviano, ao contrário, não pretendendo ao distanciamento em relação a eles, os outros, recorre ao microscópio. Temos assim, me parece, paradoxalmente uma obra autobiográfica em que o autor não se põe, e uma obra jornalística em que o autor se põe o tempo todo.
Em outras palavras: a transitividade entre sujeito-narrador e seu objeto-narrado percorre trajetos completamente diferentes em cada caso. Em Tezza é tão grande o distanciamento criado entre os dois momentos existenciais do ele-eu, que é como se o último dissesse sobre o primeiro: “a clivagem que se deu entre mim e ele foi tão profunda, que a única coisa que ainda me faz reconhecer esse ele é a memória, não a identidade; portanto, o pronome eu não cabe”. E, obliterada a identidade, não há culpa, não há confissão. Só mesmo os recursos da elaboração literária podem criar entre dois avatares da mesma personalidade uma distância muito maior do que a existente entre duas personalidades desde sempre diferentes, caso de Saviano (testemunha, vítima e acusador) e seus réus.
Esse processo em Tezza é muito coerente. Afinal, o narrador de hoje não pode adotar métodos que condena no ele de ontem, pois ele, ator de 1970, buscava a utopia do “sentimento verdadeiro”, da “verdade das emoções”, da “vivência profunda”, tudo impregnado pela “inescapável volúpia da culpa”, enfim, o anti-Brecht (p. 190). Porque então, “o ridículo beirava insidioso cada gesto” (idem). No fundo, é o distanciamento criado pelo modo como o narrador se põe diante do ele que possibilita evitar com este seu avatar do passado uma identidade de emoções hoje indesejável, mas sumamente desejada naquele teatro dos anos 70. Fica a pergunta: o distanciamento criado pela inteligente manipulação dos pronomes realmente anulou a catarse? Quem responde?
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Importante notar que li o livro em italiano, por isso faço referência à linguagem de Saviano mesmo. Caso tivesse lido a tradução, não omitiria o nome do tradutor e não me referiria apenas ao modus faciendi do autor, mas seria obrigada a considerar a obra daquele que serve de intermediário entre quem escreve numa língua A e quem lê numa língua B. Coisa que muito resenhista esquece.
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Os conceitos aqui expostos podem ser encontrados em O local da diferença, Editora 34, 2006, ensaio “Literatura, testemunho e tragédia, pensando algumas diferenças”.
Cristóvão Tezza e Roberto Saviano:
o encontro dos diferentes
Gomorra
Roberto Saviano
Mondadori, 2006
O filho eterno
Cristóvão Tezza
Editora Record, 2006